Panóptico

segunda-feira, 20 de junho de 2011

EM DIA DE CACHORRO LOUCO (por Pirro)

Benicio Del Toro - fotografia do filme neo-noir Sin city - a cidade do pecado (2005), dirigido por Roberto Rodriquez.

             Era sábado nublado. Aqui e acolá, caía uma chuva fina, o suficiente para encharcar a cidade. Celso Blues Boys tocava Sempre brilhará. Solange falava dos planos que ela tinha na manga para 2011 e 2012. Falava em ter um filho, fazer um curso universitário, colocar silicone nos peitos ou comprar um carro. Toda a sua conversa me deixava pensando. E quanto mais pensava, eu queria que o mundo parasse, ou, pelo menos, os homens e mulheres deixassem de tanto correr nessas avenidas de concreto. Na verdade, eu só queria ouvir música, não queria saber de problemas e por isso cantava como um bluesman, no sinal fechado da Av. Santa Gleide: “estou deixando o céu, rumo ao inferno”.
          O sinal abriu e entrei à direita, para pegar a Av. Tancredo Neves, depois contornar o viaduto e seguir pela Osvaldo Aranha em direção ao Centro, aonde eu iria deixar Solange no trabalho. A cada passada de marcha, minhas mãos deslizavam pelas coxas de Solange, enquanto brincava com ela, falando-lhe bobagens afetivas.
          A 500 metros, parei no sinal vermelho do D. Pedro, papeando com minha bela fêmea como um verdadeiro homem da encruzilhada. E como a vida de vez quando lhe faz careta, eu não sabia que estava sendo laçado pelo inesperado no virar da esquina. À minha frente, havia dois carros emparelhados e os dois pilotos conversavam descontraidamente como se fossem bem chegados. O sinal verde sorriu para nós, e os dois amigos permaneceram parados, batendo papo à vontade, impedindo a passagem. O Corsa do lado se coçou esguichando buzinadas e os amigos não estavam nem aí. Olhei para Solange, dizendo-lhe que não acreditava no que estava vendo. Mordendo os dentes como um cão, me fixei de novo nos dois amigos filhos da puta. De um surto, também fiz meu Siena esguichar buzinadas de raiva, mandando o pai daqueles filhos da puta para o inferno. Eles foram saindo devagar, conversando como se estivessem no seu próprio chiqueiro privado, ouvindo pagode com suas porcas burras. Aí eu pensei: “isso vai dar merda!”. Meu sangue já estava fervendo, e eu ali não estava mais por mim, mas pelo cão renascido das minhas próprias entranhas, querendo fazer caçadas no cimento.
          Solange segurou em meu braço pedindo calma, larguei a mão dela e peguei a PT. 40, que estava entre minhas pernas no banco.
“Caralho! não é possível...”
“Calma, porra, calma!”, pedia Solange já nervosa, sacudindo os braços.
“Você não tá vendo esses filhos da puta...”, eu nem conseguia falar. Só conseguia buzinar. Buzinadas a granel, vomitei pelos retrovisores de vidro do meu carro, agitando a PT. 40 no ar, tentando a todo custo seguir meu destino. Mas havia a pedra de Drummond no meio do caminho, pois os dois amigos subiam a Tancredo Neves bem lentos e tranquilos, como se estivessem testando minha paciência de cachorro louco.
“Esses filhos da puta, Solange, não sabem com quem estão brincando”, eu consegui dizer, enquanto pensava mil planos diabólicos.
          Quando passamos por baixo do viaduto, o da Fiorino acelerou o carro e partiu, enquanto o do Gol vermelho foi seguindo bem à vontade, lento como um sapo, justamente na mão em que eu estava. Quando tive oportunidade, emparelhei o meu carro com o dele e apontei a PT na cara dele:
“Filho da puta, sabe o que você está fazendo!? Filhodaputa filhodaputa filhodaputa...!
          Ele sorriu e simplesmente chupou o dedo e apontou pra mim “Aqui ó, seu otário!” Foi a gota d’água. Manobrei meu carro para a frente do Gol vermelho e tranquei o engraçadinho. Parei, liguei o pisca de “alerta” e desci do carro fumaçando. Solange tentou me segurar e eu disse:
“Fique fria! É só uma liçãozinha”
          De modo rápido, já fora do carro, me voltei e apontei o ferro para o do Gol vermelho:
“Vamos filho da puta, sai do carro!”
          Ele pálido como uma banana, fingiu não entender nada, levantando as mãos como quisesse dizer o que foi que eu fiz.
"Bora, filho da puta, desce do carro”, gritei de novo.
“Calma, cara. Calma... ca...”
“Calma, caaara! Minha garota já me disse isso, seu filho da puta. Desce do carro viado fuleiro!”
          Ele abriu a porta e começou a sair do carro. A chuva começou a cair mais forte e passavam poucos carros pela Tancredo.
“Com as mãos nos chifres, se não arranco eles!”.
          Quando ele desceu, pedi que se aproximasse. Ele se aproximou com as mãos na cabeça e apontei o cano para sua testa e olhei em seus olhos. Ele estava tremendo feito uma vara verde.
“Você já assistiu Onde os fracos não têm vez, seu filho da puta?”
“Não... nem sei...”
“Sabe quem é Javier Bardem, pagodeiro de merda?”
Não... nem sei do que...”
“Você não sabe de nada, seu porco ignorante. É um filho da puta que gosta de Aviões, Harmonia do samba e Chiclete com Banana, se proclamando “o putão”. Um ignorante de uma figa, que não entende de nada, né, animal de rebanho!?”
          O zé mané ficou sem saber o que dizer, tremendo na base.
“Acabe com essa história e vamos embora, Messias”, Solange gritou de pé na porta do Siena.
          Dei uma olhada no seu Gol vermelho, parecia novinho em folha. E então mirei no capu.
“Não, cara, pelo amor de Deus, não faça isso!”
          Analisei aquele lindo Gol vermelho que brilhava como uma Ferrari, e o nome vazio de deus refletia nele.
“Ok, man, como queira. Ele parece ser mais valioso...”
          Sem contar história, mirei nele e atirei. O boneco despencou do alto de sua vidinha insignificante e seu corpo caiu tremulando como a bandeira das Nações Unidas no asfalto encharcado da Av. Tancredo Neves. Enfiei a pistola debaixo da camisa e voltei para meu carro. Engatei a primeira e acelerei, com o coração batendo como mil tambores primitivos. Solange se abraçou comigo e recoloquei Sempre brilhará para tocar no meu Pioneer. Comecei a cantarolar, como um bluesman da encruzilhada, enquanto seguíamos nosso destino sem-volta...
"as coisas são assim
pra que se lamentar
se dentro de nós
sempre existirá
sempre existirá"

segunda-feira, 6 de junho de 2011

ODE AO ESPÍRITO MARGINAL (por Pirro)


Johnny Cash, por Jim Marshall.





Para Sérgio Dedão, Vardeleno de Assaré, Beto Oão, Clark Bruno, Marcelo Paulista e Caburé. A todos os espíritos revoltados.








Meus camaradas, quando os nossos punhos
vibram nos quatro ventos
a Terra pulsa abaixo e dentro de nós
como um acorde de Rock and roll
ecoando alucinado em nossas veias.
Diante de nossos versos (in)decentes
os vermes da tartufice se enfiam
debaixo do tapete e rezam
como lesmas sacrossantas
para que os seus deuses nos apedrejem.
As baforadas de ervas e bate-papos
nas tardes de biritas e preleções nietzschianas
significam o renascimento do mundo
sobre as cinzas dos fantoches e fetiches
de nossa civilização arrogante.


Não pretendemos salvar a humanidade
porque a humanidade nunca esteve perdida
ela apenas deu corda aos seus próprios fantasmas.
À margem de qualquer pregação
apenas vivemos dançando bebendo lutando
por um lugar ao sol
no cimento inabalável dos dias
subindo e descendo as ruas
cheias de nervos e eletricidade.


Pouco importa a nós, meus camaradas
esse bando de Jeremias tateando o nada
engolindo as promessas dos promotores
da política e da (agri)cultura do rebanho.
A química de nosso estômago e artérias
consiste nas fibras de relâmpagos e trovões
temos colhões, o mundo e as mulheres
estão do nosso lado
porque sempre estaremos cantando
suas paixões mais vitais –
todas as coisas, acasos, acontecimentos
e impulsos telúricos falam
a nossa língua  além-do-bem-e-do-mal.
Os eunucos de deus já estão mortos há tempos
seja em Aracaju, São Paulo, Paris ou New York;
suas rezas e seus ideais prontos e acabados
foram soterrados pela bomba-relógio da história.


Os socos nas paredes do atraso mental,
a galhofa de sátiro dando pinotes
dentro e fora de nós,
o olhar de carcará do nosso espírito
copulando com as dissimulações sadias,
o jogo de cintura e as esporas
que trazemos afiadas para conduzir
as modernas bestas de carga -
tudo isso foi sacado por nós
por força ética de nossos bons modos
que cheira como o estrumo das ruas.


O coração bate a mil por hora
como tambores primitivos,
o corpo parece bandeiras multicoloridas
tremulando num Fla-Flu com estádio lotado,
quando temos a vida e o mundo do nosso modo
com torcida feminina e tudo.
Ah, essas bucetas sagradas
que tocam fogo no mundo
desfilam pelas avenidas da cidade
contemplando as vitrines de seus sonhos
como se estivessem tecendo
uma armadilha para seus amantes;
que ficam doidos por esses belos demônios
como os benditos poetas-santos de Xiva
que vieram percorrendo “mundos impossíveis”
pelas maravilhas-de-saia através dos séculos.
E assim, todo o mundo que se alarga além de nós
ressuscita na eterna aliança dos amantes
que se lançam na licença poética
de suas trepadas mais intensas.


Nós, os carpinteiros da vida
construiremos um santuário
com nossas fêmeas mais nobres
no centro de um imenso vinhedo
para que possamos nos sábados à noite
fazer a festa nos becos do universo;
e deixar que a natureza copule
em copos cheios e férteis
para que nesse planeta heterossexual
um novo homem e uma nova mulher
venham à luz e perpetuem as crias mais dotadas
em torno e além de si na imortalidade do sangue.


Na verdade, meus camaradas
o futuro é onde estamos
já somos seu ancestral;
os filhos da geração fodida
a deitar por terra todos os valores
que até hoje fizeram do bicho-homem
uma ameba neurastênica.
Já somos em qualquer canto do mundo
os grandes animais que arrancaram
as máscaras de ferro de todas as condutas exemplares:
cuspimos educadamente nos altares pomposos
e nos curamos do veneno dos piratas da moral.
Temos agora a saúde dos convalescentes
que cavalgam para o Aberto mundano de Rilke
onde o doce e o sal da travessia é experimentado
e vivido com a mesma intensidade
sem a acusação do tribunal da consciência.


Somos nós a algazarra dos libertinos
e a prudência dos transgressores
atados pela ponte do destino.
Nossa bravura marginal, my brothers
é redimir a Terra-mundo das dívidas e dúvidas
como quem fuma seu cigarro
observando as correntezas do Rio Sergipe
e ouvindo a velha filosofia do Mercado Central.