Panóptico

quinta-feira, 13 de março de 2014

CRÔNICA DA VIDA ORDINÁRIA

OS FILHOS DE DEUS

"Thinker on a rock" (Barry Flanegan)
Estava um dia lindo... Lindo porque o clima parecia suave como uma velha cachaça mineira degustada com caju; e o céu estava meio nublado com indícios de chuva. Senti vontade de dar beijos nas faces da terra e distribuir bons-dias para todos os que passavam por mim.

Subi a Rua Poço do Mero em direção ao Centro da cidade. Carros atrasados e, por isso, apressados, buzivavam para eu sair da frente. Eu saltava para a direita, e eles passavam zunindo em meus ouvidos. Eu contemplava de todos os ângulos a fauna humana civilizada e dizia para mim mesmo: como esses bonecos são tão egoístas tanto quanto seu deus!
    Na esquina do canal de esgotos do D. Pedro, ao lado do Mundo da Construção, eis que eu estou parado esperando o melhor momento para pegar a Avenida Tancredo Neves, um Agile preto veio pela esquerda e avançou agilmente. O som que vinha de dentro daquela praga era monstruoso. Era música de mau gosto, e para piorar, o som era ruidoso e grave como se os alto-falantes estivessem furados. O Agile postou-se como se fosse me trancar. Olhei para o motorista. O mulato, de óculos azuis brilhantes e com cara de cristão pagodeiro, não estava nem aí. Fiquei olhando para ele balançando a cabeça como um calango. Logo que a pista ficou livre do trânsito intenso, que vinha dos diversos redutos da Zona Norte, ele avançou queimando os pneus e passando em minha frente, impedindo meu avanço. Depois que ele passou, eu acelerei. No fundo do Agile havia uma frase escrita: “Não tenha inveja de mim. Esse foi Deus que me deu”. Acelerei meu carro até ficar lado a lado com o sortudo. De propósito, fiquei olhando e admirando aquela massa humana interessante. O passageiro que estava com ele, ao me ver passando, cutucou o amigo. Este esticou seu pescoço, arregalou o olho esquerdo e disse gesticulando com delicadeza:
“O que tá olhando, otário! Vá se foder, seu filho da puta! Mané!”
Como o dia estava lindo e havia entrado em minhas entranhas como um sopro de fiat lux, eu ri e mandei um beijo para ele, seguindo meu caminho contornando o viaduto para entrar na Avenida Osvaldo Aranha.
Entrei com cuidado, sem muita pressa, na mão-direita da Osvaldo Aranha. Olhei a cidade de cima do viaduto e o dia estava - como os meus cabelos - leve e solto. Deu vontade de me lançar no horizonte para além da Barra dos Coqueiros ou quem sabe lá para os lados de Pirambu, e mergulhar na Lagoa Redonda de córregos cristalinos, que são como os olhos de Cecília Miron... Talvez fosse um desejo de fuga para um sonho bucólico. Talvez uma espécie de fobia pelo convívio social... Talvez... mas, pelo menos, alguns dias de fuga poderiam me garantir um relaxamento verde e um breve esquecimento de nossa admirável civilização.
Parei no primeiro sinal da Osvaldo Aranha. Pelo retrovisor interno, eu vi um taxista apontando seu dedo para mim. Parecia ser um dedo rígido e grande como o Dedo de deus que se estende acima da Serra dos Órgãos. Era um galego de cabelos escorridos e tinha cara de ceboleiro. Não entendi por que ele estava apontando seu dedo em minha direção. Por um momento, tive dúvidas se aquela demonstração de amor-ao-próximo era lançada sobre minha face ou se era para outro felizardo.
O sinal verde abriu, como se a esperança tivesse acordado de um pesadelo profundo e tentasse unir os bichos no asfalto da vida moderna. Acelerei o carro levemente, e de modo progressivo. Nisso, o taxista ultrapassou pela esquerda e urrou:
“Vá dirigir carroça de boi, seu corno manso”.
Balancei a cabeça como um calango: hoje é o dia! Eu falei para mim mesmo, Hoje é o dia!... O cara arrancou com tanta velocidade que nem deu tempo de mandar-lhe um beijo, importado de Queriote. Respirei fundo e segui como se nada tivesse acontecido, afinal o dia continuava lindo, embora o tom cinza já começasse a contaminar meu estômago.
Peguei a Rua Mariano Salmeron e passei os sinais verdes das ruas Acre, Sergipe e Bahia. Na mesma mão direita da via, parei no sinal vermelho da Rua Pernambuco com a Salmeron, atrás de um táxi de lotação do Parque dos Faróis. No para-brisa traseiro, havia uma imagem de uma santa envolvida por um rosário. Ao lado da imagem, lia-se uma sábia frase: “Tudo posso naquele que me fortalece”, e um pouco abaixo da frase um letreiro bem grande: “DEUS”. Sacudi minhas sobrancelhas: só pode ser coisa de pobre... pobre de espírito, com essa mania de colocar frases-clichês nos para-brisas de seus automóveis, pensei com um meio-sorriso atravessado na boca.
O sinal verde deu o ar de sua graça. E, então, o táxi de lotação ficou parado onde estava. Quando aprumei a vista, eu vi: lá estava o dedo apontado para mim com toda a civilidade do mundo moderno. O táxi foi saindo lentamente como uma tartaruga de metal. Num acesso de bicho, girei rapidamente o volante para a direita e passei por ele. Instantaneamente, girei para a esquerda e tomei a frente raspando a frente do táxi trancando o filho de deus. Minha intenção era assustá-lo. Acelerei o carro e atravessei a linha férrea da Avenida Rio de Janeiro tentando seguir meu caminho.
Depois que peguei a Rua Laranjeiras subindo em direção ao Centro, olhei pelo retrovisor traseiro não vi sinal do táxi de lotação. Minha cabeça já estava dando vertigem. Na altura do Bairro Cirurgia, passei a mão nos meus cabelos leves e soltos, e pensei: “Calma, cara, calma. O dia está lindo e não merece ser estragado. Você é um bicho racional... racionalize e pense com quantos paus se faz uma canoa, para que você possa nadar no horizonte da Lagoa Redonda”. Então, respirei fundo descendo a Laranjeiras.
No cruzamento da Rua de Siriri, onde as antigas prostitutas de Amando Fontes exorcizavam o fantasma da Ordem e do Progresso, olhei de novo pelo retrovisor e avistei o taxista do lotação fortalecido pelo seu deus, apontando seu dedo para mim, como quem dizendo “você está fodido”. De repente, ao chegar ao sinal da Rua Propriá com Laranjeiras, o filho de deus acelerou sua máquina e passou rente a porta do meu carro me chamando de filho da puta e me trancando. Tive que frear bruscamente para não bater na lateral do táxi. Suei frio e fiquei atônito, com o ódio estampado em meu rosto. O sinal abriu e ele acelerou desaparecendo de minha vista. Fiquei ali parado com os carros, atrás de mim, buzinando em minha alma engasgada... Passei a mão pelo meu rosto, acelerei o carro e segui em frente sem esperar mais nada de proveitoso do lindo dia. Enquanto eu pegava a Rua Capela, lembrei do Messias. Como eu desejei ser o Messias!... Pistoleiro, sim; mas, também, matador de valentões.