Panóptico

sábado, 27 de setembro de 2014

POEMA EM LINHA TORTA (Pirro)

"Moloch" by Lynd Ward (1980)

                      










                      
                      Seja lá
                      qual for
                      a sua
              nova identidade,
                         por onde quer
           annnnnnnnnnde
                      ou
                     nnnnnnnnnnnade,
                         o fundo
                               do seu rio
             permanecerá
                       o mesmo
        Você, homem novo
                    Você, mulher nova...
                        [todos Nós
          os molochs modernos
                     civilizados
                         [nós
                       atados
                         aos
                 troncos e trancos
                             da
         vida                             terra

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

EPIGRAMA (Pirro)

Faun és nimfa (1867), by Pál Szinyei Merse
 
Na rua uma ode explode
quando o bandeiro dela se sacode
fico feito doido frenético
cabriolando feito bode

domingo, 14 de setembro de 2014

SURREALISMO POLÍTICO (Pirro)























 
"Ao vencedor, as batatas".
(Machado de Assis)
                              
 Lá se vão os lobos com palavras de anjos
Ganindo pelas ruas de concreto e lama        
Antropofagia de tupinambás espertos,
Sem sarna e com Sarney
Os lobos negociando, conspirando,
Criando estratégias para abocanhar o poder,
Os lobos encenam-se como oposicionistas
De trincheiras amistosas no teatro Tobias Barreto.
Eles ocultam um segredo nessa tragicomédia mundial:
O segredo da loucura pelo dinheiro,
O doce... o pomposo, o vaidoso poder!...
                   Eila! A Matrix...
Galaxys universais, facebookers
Twitters, chips mentais
What’s up!... dizem as ovelhas universotárias.
 
                             II
 
De repente, de uma queda surge Marina
Nevando com Aécio, avexando a revolucionária...
Ela retorna como uma múmia meio Mona Lisa
A Maria do povo, do João-ninguém e solícitos Francos,
Que sacrificou a própria família
pela coligação da astúcia,
Maria tão pálida, tão santa, tão honesta
Com brilho de plástica e botox
E jeito de feiticeira católica.
Elas retornam para reuniões vantajosas
Com muitos líderes bem intencionados
                        Da Matrix
galaxys universais, facebookers,
Twitters, chips mentais
WhatsApp!... dizem as ovelhas da paz e da Justiça.
 
                             III
 
Os lobos vendem boas intenções
A um alto custo e curto prazo
Quando estão rezando na Catedral
              E armando no Congresso.
As conexões, a grana, os chás, os consensos,
Os seletos lobos bebendo Seleta e Old parr
Rindo dos bestilizados e parasitários
Fetichizados pelas esmolas clientelistas,
sem educação, mas com diploma de doutor...
Os filhos da besta cega,
tecnologizados, fartos ou famintos
                   Na Matrix          
Galaxys universais, facebookers
Twitters, chips mentais…
WhatsApp!... dizem as ovelhas dos templos evangélicos.
 
                             IV
 
Os lobos empenham as palavras a ferro frio
Palavras ditas in nome dei...
Arregimentam o cabo eleitoral,
O cargo de comissão, voto de cabresto e de miséria...
Os lobos mapeiam o território
Pelas engrenagens dos cartéis de bandidos engomados,
Para meter a mão no controle-remoto da Matrix.
Todos os partidos partem o bolo de ouro,
E a política secreta, fragmentária, suspeita continua
Partindo, subtraindo, in-gerindo
Pelas graças do espírito santo e dos três poderes.
Ela continua num acordo “transparente”,
vigiada pelas câmeras, holofotes e radares
                 Da Matrix
Galaxys universais, facebookers,
Twitters, chips mentais…
WhatsApp!... dizem os jovens sábios da nação.

                                V
 
Os tempos continuam...
Os lobos terão nomes de praças e viadutos,
E, com desespero, aspiram à eternidade
Para durar na Matrix... e ficar condecorado
No monumento da história da barbárie.
                Eis a Matrix
Galaxys universais, facebookers
Twitters, chips mentais
What’s up...! dizem os lobos honestos de deus.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

POR UM INSTANTE E SETE DIAS - por Pirro

O último julgamento, de Michelangelo.
















Uma virtuosa e douta jararaca
de barba e cabelos brancos
me pegou de peito aberto
e mordeu meu calcanhar de Aquiles.
Por instante, seu veneno
do tamanho de um hipopótamo
paralisou meus neurônios
e tentou corroer minha língua.
Sua pele se despregou de seu corpo
um ancião surgiu cantando de galo.
E com medo do mar e da morte
apontou seu dedo bíblico para mim,
jogou pedras de pragas em minha cabeça e disse:
“Um dia, verei um côco - da teoria da relatividade -
cair em sua cabeça; você dobrando seus joelhos e rogando:
Senhor, perdoe este servo medíocre, que caiu em pecado”.

Por setes dias, senti os efeitos do seu veneno.
Por sete dias, olhos constrangidos
me gretavam de Judas Iscariotes.
Por sete dias, Lilith cantava a música dos revoltados.
Por mais sete dias, fiquei injuriado como Caim e Esaú.
Por mais sete dias, o mendigo Édipo batia em meu peito.
Por mais sete dias, me curei e me convalesci:
um Aquiles nasceu de novo pintado de tupi
vibrando seu martelo e seu punhal
pronto para escalpelar
os virtuosos doutos e seu jararaco deus.
                                                                                 (Pirro)

quinta-feira, 13 de março de 2014

CRÔNICA DA VIDA ORDINÁRIA

OS FILHOS DE DEUS

"Thinker on a rock" (Barry Flanegan)
Estava um dia lindo... Lindo porque o clima parecia suave como uma velha cachaça mineira degustada com caju; e o céu estava meio nublado com indícios de chuva. Senti vontade de dar beijos nas faces da terra e distribuir bons-dias para todos os que passavam por mim.

Subi a Rua Poço do Mero em direção ao Centro da cidade. Carros atrasados e, por isso, apressados, buzivavam para eu sair da frente. Eu saltava para a direita, e eles passavam zunindo em meus ouvidos. Eu contemplava de todos os ângulos a fauna humana civilizada e dizia para mim mesmo: como esses bonecos são tão egoístas tanto quanto seu deus!
    Na esquina do canal de esgotos do D. Pedro, ao lado do Mundo da Construção, eis que eu estou parado esperando o melhor momento para pegar a Avenida Tancredo Neves, um Agile preto veio pela esquerda e avançou agilmente. O som que vinha de dentro daquela praga era monstruoso. Era música de mau gosto, e para piorar, o som era ruidoso e grave como se os alto-falantes estivessem furados. O Agile postou-se como se fosse me trancar. Olhei para o motorista. O mulato, de óculos azuis brilhantes e com cara de cristão pagodeiro, não estava nem aí. Fiquei olhando para ele balançando a cabeça como um calango. Logo que a pista ficou livre do trânsito intenso, que vinha dos diversos redutos da Zona Norte, ele avançou queimando os pneus e passando em minha frente, impedindo meu avanço. Depois que ele passou, eu acelerei. No fundo do Agile havia uma frase escrita: “Não tenha inveja de mim. Esse foi Deus que me deu”. Acelerei meu carro até ficar lado a lado com o sortudo. De propósito, fiquei olhando e admirando aquela massa humana interessante. O passageiro que estava com ele, ao me ver passando, cutucou o amigo. Este esticou seu pescoço, arregalou o olho esquerdo e disse gesticulando com delicadeza:
“O que tá olhando, otário! Vá se foder, seu filho da puta! Mané!”
Como o dia estava lindo e havia entrado em minhas entranhas como um sopro de fiat lux, eu ri e mandei um beijo para ele, seguindo meu caminho contornando o viaduto para entrar na Avenida Osvaldo Aranha.
Entrei com cuidado, sem muita pressa, na mão-direita da Osvaldo Aranha. Olhei a cidade de cima do viaduto e o dia estava - como os meus cabelos - leve e solto. Deu vontade de me lançar no horizonte para além da Barra dos Coqueiros ou quem sabe lá para os lados de Pirambu, e mergulhar na Lagoa Redonda de córregos cristalinos, que são como os olhos de Cecília Miron... Talvez fosse um desejo de fuga para um sonho bucólico. Talvez uma espécie de fobia pelo convívio social... Talvez... mas, pelo menos, alguns dias de fuga poderiam me garantir um relaxamento verde e um breve esquecimento de nossa admirável civilização.
Parei no primeiro sinal da Osvaldo Aranha. Pelo retrovisor interno, eu vi um taxista apontando seu dedo para mim. Parecia ser um dedo rígido e grande como o Dedo de deus que se estende acima da Serra dos Órgãos. Era um galego de cabelos escorridos e tinha cara de ceboleiro. Não entendi por que ele estava apontando seu dedo em minha direção. Por um momento, tive dúvidas se aquela demonstração de amor-ao-próximo era lançada sobre minha face ou se era para outro felizardo.
O sinal verde abriu, como se a esperança tivesse acordado de um pesadelo profundo e tentasse unir os bichos no asfalto da vida moderna. Acelerei o carro levemente, e de modo progressivo. Nisso, o taxista ultrapassou pela esquerda e urrou:
“Vá dirigir carroça de boi, seu corno manso”.
Balancei a cabeça como um calango: hoje é o dia! Eu falei para mim mesmo, Hoje é o dia!... O cara arrancou com tanta velocidade que nem deu tempo de mandar-lhe um beijo, importado de Queriote. Respirei fundo e segui como se nada tivesse acontecido, afinal o dia continuava lindo, embora o tom cinza já começasse a contaminar meu estômago.
Peguei a Rua Mariano Salmeron e passei os sinais verdes das ruas Acre, Sergipe e Bahia. Na mesma mão direita da via, parei no sinal vermelho da Rua Pernambuco com a Salmeron, atrás de um táxi de lotação do Parque dos Faróis. No para-brisa traseiro, havia uma imagem de uma santa envolvida por um rosário. Ao lado da imagem, lia-se uma sábia frase: “Tudo posso naquele que me fortalece”, e um pouco abaixo da frase um letreiro bem grande: “DEUS”. Sacudi minhas sobrancelhas: só pode ser coisa de pobre... pobre de espírito, com essa mania de colocar frases-clichês nos para-brisas de seus automóveis, pensei com um meio-sorriso atravessado na boca.
O sinal verde deu o ar de sua graça. E, então, o táxi de lotação ficou parado onde estava. Quando aprumei a vista, eu vi: lá estava o dedo apontado para mim com toda a civilidade do mundo moderno. O táxi foi saindo lentamente como uma tartaruga de metal. Num acesso de bicho, girei rapidamente o volante para a direita e passei por ele. Instantaneamente, girei para a esquerda e tomei a frente raspando a frente do táxi trancando o filho de deus. Minha intenção era assustá-lo. Acelerei o carro e atravessei a linha férrea da Avenida Rio de Janeiro tentando seguir meu caminho.
Depois que peguei a Rua Laranjeiras subindo em direção ao Centro, olhei pelo retrovisor traseiro não vi sinal do táxi de lotação. Minha cabeça já estava dando vertigem. Na altura do Bairro Cirurgia, passei a mão nos meus cabelos leves e soltos, e pensei: “Calma, cara, calma. O dia está lindo e não merece ser estragado. Você é um bicho racional... racionalize e pense com quantos paus se faz uma canoa, para que você possa nadar no horizonte da Lagoa Redonda”. Então, respirei fundo descendo a Laranjeiras.
No cruzamento da Rua de Siriri, onde as antigas prostitutas de Amando Fontes exorcizavam o fantasma da Ordem e do Progresso, olhei de novo pelo retrovisor e avistei o taxista do lotação fortalecido pelo seu deus, apontando seu dedo para mim, como quem dizendo “você está fodido”. De repente, ao chegar ao sinal da Rua Propriá com Laranjeiras, o filho de deus acelerou sua máquina e passou rente a porta do meu carro me chamando de filho da puta e me trancando. Tive que frear bruscamente para não bater na lateral do táxi. Suei frio e fiquei atônito, com o ódio estampado em meu rosto. O sinal abriu e ele acelerou desaparecendo de minha vista. Fiquei ali parado com os carros, atrás de mim, buzinando em minha alma engasgada... Passei a mão pelo meu rosto, acelerei o carro e segui em frente sem esperar mais nada de proveitoso do lindo dia. Enquanto eu pegava a Rua Capela, lembrei do Messias. Como eu desejei ser o Messias!... Pistoleiro, sim; mas, também, matador de valentões.

sábado, 20 de julho de 2013

MULHER DE CONTABILIDADES - por Pirro

"Números e constelações em amor com uma mulher" (Joan Miró)





















Você, mulher de contabilidades
a beleza geométrica de suas planilhas
não consegue calcular a somatória
de meus desejos somáticos
seus encantadores olhos matemáticos
não enxergam as estrelas
que brilham no porão do meu corpo
onde você se encontra
com sua buceta suculenta
cuja memória me deixa 
                            com água-na-boca.

Você, mulher de ousadias e coragens
em rápida e breve passagem
passou feito a desconhecida de Baudelaire
deixando nas paredes de meu ser-tão
o eco de seu sorriso e de sua voz.

Você, maravilhosa paraense,
consegue medir o que um homem sente
quando se encontra perdido
além da exatidão dos números?

Vem cá, flor de croatá, me diz:
existe sexo por osmose platônica...?
Não sou Platão nem tampou’Camões
estou para os poeta-santos de Xivas
             na medida
       em que me'quilibro
                entre suas coxas
sob o nordestino sol do litoral.

sábado, 13 de julho de 2013

TODO DIA É DIA DAS MÃES (Sergio Dedão)

Maternidade - por Pablo Picasso


Para minha amada mãe
Miriam
















Todo dia é dia das mães
Que alimenta dentro de seu corpo
Que fecunda, gera e da à luz-vida
Que amamenta o garoto de sorte
Que beija antes e depois das trocas de fraudas
Que acorda a cada três horas
Que introduz o alimento
Que educa nos primeiros passos da vida
Que leva à escola
Que deixa o jantar para depois da escola
Que aprende a ler, escrever e contar juntos
Que ensina valores e crenças
Que cuida das feridas e das altas temperaturas
Que não dorme enquanto seu filho não chegar
Que dividi e compartilha sonhos, melhor que soma sonhos
Que o vê crescer mas sempre o vê como criança
Que o beija como bebê mesmo depois de “grande”
Que o observa crescer, casar e ter filhos
Que você se vê nele ninando a cria
Que você sempre seja minha eterna mãe
Que me cubra de beijos e me faça querer ser criança
Pois sob o céu estrelado sempre gritarei: “MAMÃE !” – bem alto.

Sergio Ricardo – Coordenador – 09/05/2013

sexta-feira, 14 de junho de 2013

VÊNUS FATALE - por Pirro

by Milo Manara                                                            
                                                       
Em Teresina
No centro do Ser-tão
Cavando uma mina
Longe do meu portão
Meio doido por Paragominas
Sem saber se sou eu
Enroscado
Nos cabelos de uma índia
Vênus fatale de Dom Eliseu
Sem parada no Pará...
Fervendo dentro de mim
Numa solidão de hotel

sábado, 18 de maio de 2013

O FATOR DEUS – por José Saramago













Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. 
Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um  negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.
Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Fonte: Folha de São Paulo, em 19/09/2001: