Panóptico

sábado, 18 de maio de 2013

O FATOR DEUS – por José Saramago













Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. 
Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um  negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.
Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Fonte: Folha de São Paulo, em 19/09/2001:

domingo, 28 de abril de 2013

TIPOLOGIA DO CARÁTER NA GENEALOGIA DA MORAL - por Sérgio Ricardo Dedão


I.     INTRODUÇÃO

... A verdade da primeira dissertação e a psicologia do cristianismo: o nascimento do cristianismo, do espírito do ressentimento, não como se crê, do espírito – um antimovimento em sua essência a grande revolta contra a dominação dos valores nobres.  A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a mesma não é, como se crê, “a voz de Deus no homem” – é o instinto de crueldade que se volta para trás, quando já não pode se descarregar para fora.  A crueldade pela primeira vez revelada como um dos mais antigos e indeléveis substratos da cultura.  A terceira dissertação dá resposta à questão de onde procede o tremendo poder do ideal ascético, o ideal sacerdotal, embora o mesmo seja o ideal Naciso por excelência, uma vontade de fim, um ideal de decadência.  Resposta: não porque Deus atue por trás dos sacerdotes, mas sim faute de mieux (por falta de coisa melhor) – porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrentes.  ‘Pois o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...’ Três decisivos trabalhos de um psicólogo, preliminares a uma trensvaloração de todos os valores. – Este livro contém a primeira psicologia do sacerdote. (NIETZSCHE, Ecce Homo: Genealogia da Moral: um escrito polêmico, p. 97-98).

          Pretendo nesta pequena exposição tratar de uma obra crítica, histórica, polêmica e imprescindível para compreender o espírito do século XIX e XX.  A obra em questão é intitulada Genealogia da Moral: uma polêmica (1887), do filósofo alemão Frederich Wilhelm Nietzsche.  A obra acima citada versa sobre: a psicologia da moral cristã; a origem histórica da moral; e sobre o valor da moral cristã.  Estando dividida em três dissertações: “Bom e mau”, “bom e ruim”; “culpa”, “má consciência” e coisas afins.  O que significam ideais ascéticos?  A “Primeira dissertação”, trata da origem histórica dos conceitos de “Bom e mau”, “bom e ruim” e dos preconceitos morais tomados como verdades eternas e a-histórica.  Como também, dá psicologia da moral do ressentimento cristão.  A “Segunda dissertação, trata da psicologia do ressentimento, enfocando o aspecto da “crueldade” em várias épocas e povos, mas sempre voltada aos termos “culpa” e “má consciência”. A “Terceira dissertação”, trata dos ideais endeusados pelo homem como positivo, os ideais sacerdotais, isto é, os ideais ascéticos.  Como também, do surgimento do ateísmo como uma meta entre outras metas a serem construídas na história em oposição e superação do niilismo, ou seja, da moral cristã.[1]

A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a partir de suas três figuras principais: o ressentimento, a má consciência, o ideal ascético” (MACHADO, 1999, p.59).

Para a análise e exposição da tipologia do caráter, farei uso da primeira dissertação, “Bom e mau”, “bom e ruim”, para mostrar os tipos – ou modelos – de homens existentes na história e suas respectivas morais, tendo como fim uma crítica ao valor da moral cristã.  Diferenciando a moral do “animal de rebanho” da moral das “aves de rapina”, visando ressaltar as diferenças fisiológicas e valorativas.  Sempre relacionando estas com suas origens históricas e observando o valor desses posicionamentos morais para com a vida.   Para tal objetivo seguirei a perspectiva metodológica de Nietzsche.

II.      MÉTODO

Meu desejo em todo caso, era dar a um olhar tão agudo e imparcial uma direção melhor, a direção da efetiva histórica da moral, prevenindo a tempo contra essas hipóteses inglesas que se perdem no azul.  Pois é obvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatáveis, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano (NIETZSCHE.  Genealogia da Moral, p.13; Aforisma 07 do Prólogo).

          O método genealógico de Nietzsche consiste em interpretar os fatos a partir de “diversas óticas”, ou melhor, sobre diferentes “ciências”.  Para tal interpretação faz uso destas diversas ciências – História, Etimologia, Filosofia, Ciências da Natureza, Fisiologia, Psicologia – disponíveis no séc. XIX – para mostrar as contradições dos preconceitos morais existentes na visão de mundo sacerdotal e para “humilhar” a valoração – WERTSCHÄTZUNG – dos “ideais erigidos” pelo cristianismo, que moraliza a vida e retira seu valor primordial.  “Este orgulho deve ser humilhado, e esta valorização desvalorizada: isso foi feito?” (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Aforisma 02, p.19).  O filosofo alemão, toma partido da vida – vontade de poder (Wille Zur  Macht) – e aceita a realidade efetiva como dada, o mundano é o que existe, em outras palavras, o mundo histórico-fenomênico.

A análise histórico-filosófica da moral também remete à concepção da vida como força, como potência ou como vontade de potência que lhe serve de  fundamento.  E o  que se revela, então, é a grande antinomia  entre a moral e a vida: a moral, como manifestação  da fraqueza e  insurreição  contra a vontade afirmativa   de potência, é uma negação da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais” (MACHADO,  1999, p. 11-12).

          O perspectivismo (Perspektivische) histórico serve como método e fundamento para questionar qual a origem histórica dos conceitos de “Bom e mau” (Gut und Böse), “bom e ruim” (Gut und Schlecht), entendendo origem histórica, como surgimento, como aparecimento destes termos.  A história efetiva seria o que aconteceu na realidade, e não como se apresentam nas construções idealizadas dos sacerdotes e dos filósofos.  Lembrando que o autor faz uma ponte histórico-filológica-filosófica com a atualidade, compreendendo atualidade como mentalidade do século XIX e dos dois séculos seguintes para compreensão e efetivação da filosofia nietzscheana e finalmente a concretização da derrocada do cristianismo.  Para seu intento, o discípulo de Dionísio, distinguirá épocas, povos, hierarquia dos indivíduos, raças, regiões e seus climas, com o objetivo de mostrar a “fisiologia” – percebendo o corpo como indistinto da alma, como um único corpo, ou seja, a psicologia é intrínseca a fisiologia, sendo distinguidas apenas por analogia – das duas morais existentes no ocidente.  Assim, compreende-se porque a genealogia é cinza, documental, literária e histórica.  “A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (FOUCAULT, M.  Microfísica do Poder.  In: II – Nietzsche, A Genealogia e a História, p. 15).  Portanto ser cinza é tomar o que realmente existiu como base para uma interpretação profundamente baseada na história efetiva.  E julgar a partir de fundamentos documentais os tipos e morais existentes na história do pensamento.

III.             TIPOLOGIA DO CARÁTER

– A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação.  Enquanto toda moral ‘nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador.  Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.  O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, nós, os bons, os belos, os felizes! (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Aforisma 10, p.29).

Existiram – e existem – dois tipos de homem na história efetiva, que tinham olhares diferentes sobre a vida.  Os representantes de cada moral valorava a realidade de modos antagônicos: o cristão vê a vida como um fardo e o nobre vê a vida como alegria.  Esses dois modelos dialéticos estão na base da formação da cultura ocidental.  De um lado a moral do homem nobre, forte, viril, guerreiro, senhor de si, o mais belo dos animais: “a ave de rapina”.  Do outro, o mais belo representante da moral da “decadance”, o cristão.  O modelo de tudo que é fraco, covarde, doente, aleijão, que atende pelo nome de “ovelha”.

Tese central de Nietzsche: a existência, não de uma única, mais de uma dupla origem dos valores morais e de uma oposição histórica irredutível entre dois tipos fundamentais de moral: uma “moral dos mestres” e uma “moral dos escravos”, ou, para usar as expressões de Crepúsculo dos ídolos, uma “moral sadia”, natural, regida pelos instintos da vida, e uma “moral contranatural” voltada contra os instintos da vida. Dois tipos de moral, afirma Nietzsche, mas que na realidade são totalmente heterogêneas, nada têm em comum, implicam uma diferença de níveis, uma hierarquia, mesmo que, como tipos, existam em uma mesma sociedade e até em um mesmo indivíduo.  Em outros termos, a “moral dos mestres”, a “moral sadia”, mais propriamente do que uma moral, é uma ética. (MACHADO, 1999, p.61).

A moral escrava que é representada pelos pastores nômades, os judeus e seus filhos os cristãos que afirmam o ressentimento em suas diversas manifestações.  Tal moral é concebida como doença mental, amolecimento do cérebro e é acompanhada por um desarranjo espiritual, este quadro sintomático leva-nos a perceber a anemia profunda e a fraqueza estomacal causada pelo cristianismo, além dos retrocessos históricos, morais e fisiológicos ocasionado pelo mesmo.  O cristianismo é considerado pelo autor como um atavismo (NACHSCHLAG).  As “ovelhinhas” ressentidas não apontam um sentido real na história para o animal-homem, pois ao afirmar o que está “por traz do mundo”, retiram o valor da vida para colocar em outro mundo, um mundo ficcional.  Sublimando seus anseios em Deus – ou nas palavras de Nietzsche, no “nada” – e em suas recompensas no céu.  Do fundo da mente (judaica) cristã brota a vingança contra os senhores na forma de “purgatório” e de “juízo final”, deliram e entram em êxtase só de pensar em tal idéia.  Tudo isso para justificar sua impotência diante da vida, ou seja, sua fraqueza constitutiva.  Vejamos o ressentimento sob a perspectiva de Roberto Machado:

O ressentimento é o predomínio das forças reativas sobre as forças ativas. O ressentido é alguém que nem age nem reage realmente; produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável... Criando um inimigo que considera malvado e imaginando uma vingança contra seus valores, o que faz o ressentido é dar sentido a sua falta de força: o outro é sempre culpado do que ele não pode, do que ele não é. Concebendo o inimigo forte como malvado, o ressentido – que é fraco, que é o seu oposto, que é a negação dos valores que o outro institui pode então se considerar, ou melhor, se imaginar bom.  Atitude diametralmente oposta à dos aristocratas que se autoposicionam bons, consideram mau o que é comum, o que não lhes é igual, e não desprezam, ao contrário, veneram os inimigos, isto é, também os consideram bons. (MACHADO, 1999, p. 64-65).
Nietzsche fará o desmascaramento do cristianismo ao mostrar que o cristão por não ser forte e atuante na história, por não conseguir vencer pela força e pela astúcia os senhores, ressentem-se.  Voltam-se contra tudo que é forte, belo, nobre, guerreiro e senhor, através da espiritualização do seu ódio e da vingança criadora de valores.  Esta espiritualização garante a vitória temporária do cristianismo nestes últimos dois mil anos.
Percebemos que Nietzsche toca na ferida do cristão ao fazer sua psicologia, isto é, entender como funciona a mente do animal plebeu e quais os ressentimentos e os preconceitos morais que os move.
A outra moral trata do modo de valorar aristocrático, o tipo nobre.  Tal tipo de valoração atribui um sentido positivo e afirmativo da vida, sendo a existência – empírica – quem possui o valor supremo.  Nietzsche, afirma que é intrínseca à natureza uma hierarquia entre os homens e, consequentemente, que existem desigualdades entre os homens da moral aristocrática e da moral sacerdotal.  Esse homem nobre cunhou os termos “bom e ruim” e deu nome as coisas, lembrando que não pela utilidade, ou pela compaixão, mas sim, por vontade e necessidade.  Vejamos:

Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento que sentiram e estabeleceram a si e as seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu.  Desse phatos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade.  Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe – e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente.  O phatos da natureza e da distância, como já disse, duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com o “sob”- eis a origem da oposição “bom” e “ruim”.  (O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas).  Devido a essa providência, já em princípio a palavra “bom” não é ligada necessariamente a ações “não-egoístas” como quer a superstição daqueles genealogistas da moral (NIETZSCHE, Genealogia da Moral, Aforisma 02, p.19).

Assim o animal de rapina, fez uso do “pathos da distância”, essa noção de ser diferente, de ser referência, isto é, modelo.  Ao afirmar essa mesma diferença – a partir de si mesmo – e tomar para si o direito de dar nomes às coisas e aos seres.  “Bom” para essa moral é o que aumenta a potência, que eleva a força e a estirpe.  Sendo a guerra um lugar onde esse animal superior manifesta sua força e sua crueldade.  A besta nobre, afirma o egoísmo como valor a ser tomado em uma escala de valoração elevada.  Vemos, claramente, as diferenças entre os hábitos dos cristãos, que afirmam ser a “guerra um mau negócio” e que os “hábitos hostis a ação” devem ser ressaltados e tomados na mais alta estima.
A crítica aos “genealogistas da moral” será incisiva, por eles serem maus interpretes da história da moral.  Irá direcionar-se principalmente contra os psicólogos ingleses, mas especificamente, contra o “Dr. Paul Rée” – seu desafeto –, que mergulhado na teoria da “besta darwiniana”- lembremos que o século XIX, fora muito influenciado pelas teorias de Darwin –, que acreditava que existisse um aperfeiçoamento moral e científico do homem, como também, em uma crença – superstição – cega na genealogia da moral a-hsitórica.  Esses psicólogos ingleses levaram tão a sério a evolução, que acreditam em ideais femininos-democráticos como valores universais, tais ideais, são: o não egoísmo; a compaixão; a utilidade; o esquecimento; a liberdade e, por fim, “o erro”.

Todo respeito, portanto, aos bons espíritos que acaso habitem esses historiadores da moral! Mas infelizmente é certo que lhes falta o espírito histórico, que foram abandonados precisamente pelos bons espíritos da história! Todos eles pensam, como é velho costume entre filósofos de maneira essencialmente a-histórica; quanto a isso não há dúvida.  O caráter tosco da sua genealogia da moral se evidencia já no início, quando se trata de investigar a origem do conceito e do juízo de “bom”.  “Originalmente” – assim eles decretam – “as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas – como se em si fossem algo bom”.  Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses – temos aí “a utilidade”, “o esquecimento”, “o hábito” e por fim “o erro”, tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem. (NIETZSCHE.  Genealogia da Moral, Aforisma 02, p. 18).

Não é como pensam os psicólogos ingleses que acreditam terem surgido os juízos de bom com o cristianismo e que as ações não egoístas em sua origem eram tidas como boas. E somente através do “esquecimento” os homens adormeceram e perderam-se nas lembranças o valor “positivo” do não-egoísmo. Vejamos a perspectiva de Michel Foucoult:

Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as idéias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência.  Ela deve construir seus “monumentos ciclópicos” não a golpes de “grandes erros benfazejos”, mas de “pequenas verdades” inaparentes estabelecidas por método severo. Em suma, uma certa obstinação na erudição.  A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas Teleologias.  Ela se opõe à pesquisa da origem. (FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. In: NIETZSCHE, A Genealogia e a História, p.15).

Percebe-se que os psicólogos ingleses, na busca da origem da moral perdem-se em um emaranhado de conceitos – ou seria preconceitos – desvinculados da história realmente havida, pois a história é movida por sangue, egoísmo e crueldade.  Esses ingleses com suas idiossincrasias, ou seriam valores culturais desconheceram o cinza da genealogia, consequentemente, perdendo-se no azul do céu.

IV.   BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, V. D. Nietzsche e a dissolução da moral.  São Paulo: UNIJUÍ, 2000.

BRUM, J.T. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche.  Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.  Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1995.

GILES, T. R. História do Existencialismo e da Fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989.

HEERS, J. História Medieval. Trad. Tereza Aline Pereira de Queiroz. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1974.

MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

NIETZSCHE, F.W. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza.  São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_______________.  Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
_______________. O Anticristo: maldição do cristianismo.  Rio de Janeiro: Clássicos Econômicos Newton, 1996.
_______________. Crepúsculo dos Ídolos ou a Filosofia a Golpes de Martelo. Trad. Edson Bini e Márcio Pugliesi.  São Paulo: Hemus, 1984.

_______________.  Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


[1] Nas palavras de Nietzsche, em sua autobiografia Ecce homo, ficam claras em seu comentário sobre a genealogia da moral, seu ponto de vista sobre sua obra. Vejamos: “... a verdade ...  do sacerdote”.

LOUCO DEMAIS PARA VIVER – por Clark Bruno

O Louco, by Pablo Picasso
Você acha que sou louco demais para viver
Pode pagar para ver
Sou osso duro de roer
Não desisto fácil
Não me contento com o fracasso
Faço
não ameaço
Você acha que sou louco demais para viver
Pensou que eu ia enlouquecer
De vez
Dê a cara para bater
Não vai demorar muito
pode crer
para se render
Você acha que sou louco demais para viver
Não custo a me levantar
Não sou de debandar
Luto até o gongo soar
É melhor se preparar
para apanhar



Você acha que sou louco demais para viver
Pode pegar pesado
Vou te mostra que não sou palhaço
Não faço rir à toa
Vou zombar de sua pessoa
Você acha que sou louco demais para viver
Quer me ver pelas costas
Sabe que não gosto
De lorotas
Mas antes do entardecer
Eu que vou te enlouquecer
Então vai entristecer
quando ver
que decepcionei você.

TOTEM - por Jeová Santana
















O pensamento na cabeça deste boi
Agora em repouso na parede
O tempo é um corte seco
E um mugido toma  lugar da fala

Onde seu berro trilhoso gravou-se:
Cercadinho de pobre de cristo
Ou figura de lustrosa manada?
Em que (re)pasto de lembranças
Guardou-se o estirão dos aboios?

O silêncio pousa no prato
Enquanto a cabeça contempla
O abate sereno das horas

terça-feira, 16 de abril de 2013

PROGRAMA "MESTRES E MÚSICAS" - COM JEOVÁ SANTANA & MALUH


Maluh, Jeová e o professor Pirro na entrevista de hoje, 15/04.

























"Boa noite! Hoje é dia de Mestres e Músicas e já já vamos dar início a mais uma entrevista. O mestre de hoje é o professor, poeta e blogueiro Francisco Gomes de Andrade (o Pirro)".
"Participe, mande perguntas e sugestões!
Ouça ao vivo pela 104,9 FM ou então pelo link abaixo:
http://www.ideastek.net/aperipefm/"




















No dia 15/04/2013, este matuto cosmopolita participou do Programa Mestres e músicas, da Rádio Aperipê FM, na companhia (pre)dileta e prosista do escritor Jeová Santana e da jornalista cultural Maluh. O assunto teve como referência música, literatura e prática docente.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

KAFKA E O PAI – por Andrei Albuquerque


Kafka, por Robert Crumb
     Ler “Carta ao pai” de Franz Kafka é presenciar um pungente relato autobiográfico que inicialmente foi escrito para ser entregue ao pai do escritor e não para o prelo.  Ao alcançar a publicação, a carta se tornou uma peça literária de valor perene, embora houvesse sido dirigida a Hermann Kafka, pai do escritor. Esta famosa missiva pode servir como possível chave para a obra de Kafka, pois sua leitura esclarece e enriquece o que se buscava na obra do autor.
     A presença do pai do escritor era esmagadora em sua vida; Kafka, em sua carta, destila traumas e mágoas até alcançar o ponto de um queixume burlesco – até risível, mas que sob a pena brilhante do mestre tcheco ganha valor literário além das lamentações comuns.  Porém, há também amor e admiração pelo pai como se ele fosse uma figura onipresente, mas inalcançável. Após a leitura da carta, resta a impressão indelével a respeito da marca da relação entre filho e pai na obra de Kafka; claro que a questão do poder opressivo e sufocante presente em obras como “O processo” e “O castelo” está muito além de uma superficial e reducionista leitura das relações do escritor com seu pai – a tendência a empreender uma leitura meramente edípica deve ser tomada com reservas. O escritor também era um judeu que conhecia de perto a realidade do gueto e da exclusão social.
Há em Kafka o pesadelo do poder burocrático que oprime. Todavia, obras como o inacabado “O castelo” e “O processo” podem ser lidas sob uma perspectiva existencial; contudo, ambas não são excludentes, sendo a força metafórica da obra do escritor tcheco inesgotável. Modesto Carone, ensaísta e tradutor de Kafka, lembra que “O castelo”, primeiramente, recebeu a intepretação teológica de Max Brod (amigo e editor de Kafka) que enxergava nesse romance uma busca mística por Deus. Outro exemplo, que pode ser fértil em interpretações, é o conto “Comunicação a uma academia” – que foi adaptado para o teatro – relata a história de um chimpanzé que foi “humanizado” e, por isso, perde algo de sua inocência selvagem para adotar as idiossincrasias humanas e também suas torpezas.
No entanto, novelas como “O veredicto” (1912) e “A metamorfose” (1912) mostram mais claramente a questão de uma sensação de inadequação familiar. A descrição de Kafka do mal-estar de seus personagens é forte e ácida. O famigerado personagem principal de “A metamorfose”, Gregor Samsa, o homem que acorda transformado em inseto passa toda a narrativa preso na residência familiar, enfrentando a estranheza de sua transformação e o asco de sua família ao vê-lo em sua nova condição. A comunicação entre o Gregor inseto e sua família se torna ainda mais difícil; ao poucos o inseto isolado definha e morre. A irmã tenta compreender Gregor, mas o pai apenas adota uma posição de repulsa e incompreensão. Outrossim, vale lembrar que antes de se tornar inseto, Samsa era arrimo de família, pois seu pai estava aposentado. A nova condição de inseto do filho deixa o pai furibundo por que teria que voltar a trabalhar e sustentar a família.
Além das considerações existenciais que possam ser aplicadas ao homem-inseto, há a situação absurda e terrível de seu personagem em relação à sua família; talvez aí encontremos ecos da relação entre Kafka e seu pai. Não que se deva tentar reduzir a preciosidade áspera do romance a uma fácil interpretação edípica; no entanto, não se deve desconsiderá-la, pois é notória a influência da relação de Kafka com seu pai em sua obra. E “Carta ao pai” releva, pelo seu caráter autobiográfico, o ódio e aversão que não deixam de estar fusionados com o amor e a admiração de um filho pelo seu autoritário pai – o pai terrível de Kafka também é sumamente admirado. Talvez o exemplo mais vívido seria a novela “O veredito” (1912) na qual há o claro conflito entre o personagem Georg Bendemann e seu viúvo pai .
Há, nessa “carta”, a purulência do escritor na consideração de si. Porém, todo o aviltamento de si parece servir para enaltecer Hermann Kafka, tornando esse pai um ser tentacular que o escritor, fantasiosamente, imaginava deitado sobre o mapa-múndi. O escritor David Zane Mairowitz que assina o texto – na biografia ilustrada (em quadrinhos) Kafka de Robert Crumb – acredita que o pavor de Kafka frente às relações de poder teria sua origem no convívio com seu temido pai. Na carta, o escritor dispara ao falar de si e do pai: “Eu magro, fraco, franzino, tu forte, grande, possante”. Quando adulto, Franz Kafka ainda sofria com as admoestações de seu pai que tinha fama de ser um patrão hostil que atormentava a vida de seus funcionários. Curiosamente, o autor da “carta” não recordava de ter sido insultado diretamente pelo pai, mas afirmava que havia outros meios de o pai ter agredido a ele e suas irmãs – o comportamento irascível paterno, talvez, seria o meio que mais afligisse a Franz.
A autocomiseração do autor, na carta, tangencia o insuportavelmente risível, mas também o torna mais agressivo por que este estado de autopiedade seria culpa do pai. Não obstante, esse pai temível e autoritário está deformado pelas das construções psíquicas do autor que, esplendidamente, se manifestam ao longo de sua fantástica obra.
Em suma, qualquer interpretação – oriunda de uma vasta fortuna crítica – permanecerá aquém da obra de Kafka.

Fonte: http://www.noticiasaju.com.br/artigos.asp?id_artigo=394

A BUSCA DO POETA - por Sérgio Dedão.


“Estou preso ao papel
com o prego das
palavras”
MAIAKÓVSKI

A insônia é minha companheira
Na solidão silenciosa da noite
Caço o entendimento do incompreendido
Desejo capturar rolinhas-poemas
                                                               em minha arapuca .
O que busca o poeta?
Decifrar o enigma da vida e suas contradições contraditórias
O que buscava Bukowski?
poesia e vida
em
forma
de
 simplicidade e síntese
linguística
de
dizer
o
máximo
com
o
mínimo

O que buscava Rimbaud?
Uma linguagem
camponesa
universal
brilhante
como
o
Sol e Carne
dos
conflitos
existenciais
da
natureza
humana

O que buscava Baudelaire?
o
belo
no
feio
e
o
feio
no
belo
a
Bela Carniça

O que buscava Maiakóvski?
A
multiplicidade
linguística – libertária – revolucionária
de
criar
inúmeras
formas de expressar
a
beleza da vida
e
o
amor
pelas
palavras
em
movimento
criador
Black and White 

O que busca Pirro Pardal?
O
escarnio
neologista
das
formas
de
dominação
morais
sociais
e
convencionais 

O que busca o Clark a margem?
A
transformação
da
História
da
poesia-filosófica
através
da
busca
de
todos
em
si
mesmo

Todos esses gênios
buscaram
extrair
o
máximo
da
Vida
para
cantar
a
beleza
da
Vida
e
de
está
vivo

Criando
uma
simbiose
indissociável
entre
vida – amor – vida
vida – dor – vida
vida – ardor – vida
vida – clamor – vida
vida – sobrepor – vida
vida – copular – vida
vida – musicar – vida
vida – cantar – vida
vida – poetar – vida
vida – criar – vida
sempre
vida – vida
e
mais
Vida
...

SERGIO DEDÃO
27/02/2012