"Thinker on a rock" (Barry Flanegan) |
Estava um dia lindo... Lindo
porque o clima parecia suave como uma velha cachaça mineira degustada com caju;
e o céu estava meio nublado com indícios de chuva. Senti vontade de dar beijos
nas faces da terra e distribuir bons-dias para todos os que passavam por mim.
Subi a Rua Poço do Mero
em direção ao Centro da cidade. Carros atrasados e, por isso, apressados,
buzivavam para eu sair da frente. Eu saltava para a direita, e eles passavam
zunindo em meus ouvidos. Eu contemplava de todos os ângulos a fauna humana
civilizada e dizia para mim mesmo: como esses bonecos são tão egoístas tanto
quanto seu deus!
Na esquina do canal de
esgotos do D. Pedro, ao lado do Mundo da Construção, eis que eu estou parado
esperando o melhor momento para pegar a Avenida Tancredo Neves, um Agile preto veio pela esquerda e avançou
agilmente. O som que vinha de dentro daquela praga era monstruoso. Era música
de mau gosto, e para piorar, o som era ruidoso e grave como se os alto-falantes
estivessem furados. O Agile postou-se
como se fosse me trancar. Olhei para o motorista. O mulato, de óculos azuis
brilhantes e com cara de cristão pagodeiro, não estava nem aí. Fiquei olhando
para ele balançando a cabeça como um calango. Logo que a pista ficou livre do
trânsito intenso, que vinha dos diversos redutos da Zona Norte, ele avançou
queimando os pneus e passando em minha frente, impedindo meu avanço. Depois que
ele passou, eu acelerei. No fundo do Agile
havia uma frase escrita: “Não tenha inveja de mim. Esse foi Deus que me deu”. Acelerei
meu carro até ficar lado a lado com o sortudo. De propósito, fiquei olhando e admirando
aquela massa humana interessante. O passageiro que estava com ele, ao me ver
passando, cutucou o amigo. Este esticou seu pescoço, arregalou o olho esquerdo
e disse gesticulando com delicadeza:
“O que tá olhando,
otário! Vá se foder, seu filho da puta! Mané!”
Como o dia estava lindo
e havia entrado em minhas entranhas como um sopro de fiat lux, eu ri e mandei um beijo para ele, seguindo meu caminho
contornando o viaduto para entrar na Avenida Osvaldo Aranha.
Entrei com cuidado, sem
muita pressa, na mão-direita da Osvaldo Aranha. Olhei a cidade de cima do
viaduto e o dia estava - como os meus cabelos - leve e solto. Deu vontade de me
lançar no horizonte para além da Barra dos Coqueiros ou quem sabe lá para os
lados de Pirambu, e mergulhar na Lagoa Redonda de córregos cristalinos, que são
como os olhos de Cecília Miron... Talvez fosse um desejo de fuga para um sonho
bucólico. Talvez uma espécie de fobia pelo convívio social... Talvez... mas, pelo
menos, alguns dias de fuga poderiam me garantir um relaxamento verde e um breve
esquecimento de nossa admirável civilização.
Parei no primeiro sinal
da Osvaldo Aranha. Pelo retrovisor interno, eu vi um taxista apontando seu dedo
para mim. Parecia ser um dedo rígido e grande como o Dedo de deus que se estende acima da Serra dos Órgãos. Era um
galego de cabelos escorridos e tinha cara de ceboleiro. Não entendi por que ele
estava apontando seu dedo em minha direção. Por um momento, tive dúvidas se aquela
demonstração de amor-ao-próximo era lançada sobre minha face ou se era para
outro felizardo.
O sinal verde abriu,
como se a esperança tivesse acordado de um pesadelo profundo e tentasse unir os
bichos no asfalto da vida moderna. Acelerei o carro levemente, e de modo
progressivo. Nisso, o taxista ultrapassou pela esquerda e urrou:
“Vá dirigir carroça de
boi, seu corno manso”.
Balancei a cabeça como
um calango: hoje é o dia! Eu falei para mim mesmo, Hoje é o
dia!... O cara arrancou com tanta velocidade que nem deu tempo de mandar-lhe um
beijo, importado de Queriote. Respirei
fundo e segui como se nada tivesse acontecido, afinal o dia continuava lindo,
embora o tom cinza já começasse a contaminar meu estômago.
Peguei a Rua Mariano
Salmeron e passei os sinais verdes das ruas Acre, Sergipe e Bahia. Na mesma mão
direita da via, parei no sinal vermelho da Rua Pernambuco com a Salmeron, atrás
de um táxi de lotação do Parque dos Faróis. No para-brisa traseiro, havia uma
imagem de uma santa envolvida por um rosário. Ao lado da imagem, lia-se uma sábia
frase: “Tudo posso naquele que me fortalece”, e um pouco abaixo da frase um
letreiro bem grande: “DEUS”. Sacudi minhas sobrancelhas: só pode ser coisa de
pobre... pobre de espírito, com essa mania de colocar frases-clichês nos
para-brisas de seus automóveis, pensei com um meio-sorriso atravessado na boca.
O sinal verde deu o ar
de sua graça. E, então, o táxi de lotação ficou parado onde estava. Quando
aprumei a vista, eu vi: lá estava o dedo apontado para mim com toda a
civilidade do mundo moderno. O táxi foi saindo lentamente como uma tartaruga de
metal. Num acesso de bicho, girei rapidamente o volante para a direita e passei
por ele. Instantaneamente, girei para a esquerda e tomei a frente raspando a
frente do táxi trancando o filho de deus. Minha intenção era assustá-lo.
Acelerei o carro e atravessei a linha férrea da Avenida Rio de Janeiro tentando
seguir meu caminho.
Depois que peguei a Rua
Laranjeiras subindo em direção ao Centro, olhei pelo retrovisor traseiro não vi
sinal do táxi de lotação. Minha cabeça já estava dando vertigem. Na altura do Bairro
Cirurgia, passei a mão nos meus cabelos leves e soltos, e pensei: “Calma, cara,
calma. O dia está lindo e não merece ser estragado. Você é um bicho racional...
racionalize e pense com quantos paus se faz uma canoa, para que você possa
nadar no horizonte da Lagoa Redonda”. Então, respirei fundo descendo a
Laranjeiras.
No cruzamento da Rua de
Siriri, onde as antigas prostitutas de Amando Fontes exorcizavam o fantasma da
Ordem e do Progresso, olhei de novo pelo retrovisor e avistei o taxista do
lotação fortalecido pelo seu deus, apontando seu dedo para mim, como quem
dizendo “você está fodido”. De repente, ao chegar ao sinal da Rua Propriá com
Laranjeiras, o filho de deus acelerou sua máquina e passou rente a porta do meu
carro me chamando de filho da puta e me trancando. Tive que frear bruscamente
para não bater na lateral do táxi. Suei frio e fiquei atônito, com o ódio
estampado em meu rosto. O sinal abriu e ele acelerou desaparecendo de minha vista.
Fiquei ali parado com os carros, atrás de mim, buzinando em minha alma
engasgada... Passei a mão pelo meu rosto, acelerei o carro e segui em frente
sem esperar mais nada de proveitoso do lindo dia. Enquanto eu pegava a Rua
Capela, lembrei do Messias. Como eu desejei ser o Messias!... Pistoleiro, sim;
mas, também, matador de valentões.
Um comentário:
Velho! Que texto louco. Do caralho. Rsrsrs.
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