Faço
café rapidamente. Como cuscuz com frango e pimenta. O sol lá fora desaparece. A
chuva cai como uma amante afetuosa sobre a manhã. Sento no sofá da
sala-de-estar. Um vento meio frio entra de porta adentro, afaga meus braços e
meus cabelos. Pego Joyce na estante, releio alguns trechos do conto. Uma
história simples, nada parece acontecer de extraordinário. Na verdade, revela a
matéria finita da existência e o fluxo do tempo. As recordações dos personagens
irrompem e nos levam em suas águas correntes. Fecho o livro e vejo Gretta
Conroy parada no meio da escada, escutando The Lass of Aughrim por uma voz
plangente que vêm do andar de cima. Algo acontece nela ao ouvir aquela “música
distante”. Vejo ela calada e alheia às conversas, com uma expressão melancólica
no rosto, enquanto Gabriel a observa quieto no pé da escada. Conecto ao
Youtube, assisto à mesma cena, perfeitamente reconstituída pelas mãos de John
Huston. Talvez uma das melhores cenas que já vi no cinema. A expressão pujante
do rosto de Angélica Houston, no papel de Gretta, revela as marcas de um
passado, que se tornou cicatriz em seu corpo e em sua alma. Sinto suas lágrimas
caírem sobre o lençol branco do tempo.
Lá
fora, a chuva pára, o sol surge timidamente, a manhã parece uma estampa
melancólica. Invade os poros de minha consciência. Minhas próprias lembranças
brotam como água de uma nascente e correm para além dos córregos. Como numa
tela de tv led, os fragmentos de manhãs e noites vividas vêm se juntar nesta
manhã de sábado. Num desses sábados de Hi-fi, vejo um solitário e tímido rapaz
na Praça do Cruzeiro. De dentro da multidão, ele observa a mulher que ama
encostada na entrada do Acri Clube. O olhar dela, a tez morena de sua pele, os
seus cabelos pretos se projetam no espírito dele como num painel móvel de
gravuras. Ele imagina convidando-a para dançar Save a prayer. Seu rosto
de espinhas colado no rosto dela, a boca dele roçando a orelha dela. O gesto
dos lábios de quem tem algo importante para dizer, tudo que um coração humano
pudesse ouvir e sentir. O jovem solitário vê um cara chegar de motocicleta. O
motoqueiro, de corpo largo e barba espessa, para ao lado dela. Ela se aproxima
do motoqueiro. Ele a pega pela cintura e a abraça, cochicha em seu ouvido. Ela
sorri e pula na garupa da motocicleta e vai embora de Itabi. O jovem solitário
se dirige à budega de Sêo Nelson. Pede um copo cheio de domecq, vira o copo de
vez, olha pro copo vazio e diz pra si mesmo: “ela vai embora, e eu fico aqui,
preso a ela como um condenado sem culpa”. Paga a dose de domecq e sai em
direção ao Acri Clube. O salão está cheio. Entra no salão e começa a dançar Boys
don't cry, como se tivesse com o diabo no corpo.
Levanto-me
do sofá e saio para fora. Olho mais uma vez para o céu. Meu olhar se detém no
pé de alfazema ao lado. As abelhas e as borboletas, sem melancolia em um tempo
sem-tempo, se banqueteiam em suas flores brancas. Vou até o portão. Me escoro
nele e observo a rua por onde a vida passa sem ser vista. O vento sopra minhas
memórias. Os mortos estão vivos dentro de mim. É impossível nos libertar deles.
Estão gravados em nós como tatuagens. Respiro fundo, estendo as mãos como se
quisesse segurar o vento e dominá-lo. Uma mulher passa pela rua, e uma outra,
da sacada de uma casa, diz: “Olhe o vírus, mulher. Cadê a máscara!”.
Recolho
os meus mortos e entro. Coloco uma dose de whisky e viro de uma vez.
Horas depois, ligo o carro e saio em direção ao Centro da cidade. Os mortos
adormecem em mim. Acelero e digo um grande “sim” a tudo que passou, abraço as
sombras dos que se foram e dos que ainda estão aqui. O sol agora esquenta os
ossos da cidade, o sopro quente do dia anima o meu espírito.