Panóptico

terça-feira, 24 de novembro de 2020

PASSAGENS (CONTO)

  Por Pirro


                 Eu ouço a chuva bater lá fora. São seis em ponto da manhã. Permaneço deitado por alguns minutos. Fui dormir incomodado com o conto de James Joyce. E amanheço com os “mortos” ao meu redor. Levanto da cama e me espreguiço. Escovo os dentes, lavo meu rosto. Saio para a sala, esticando os braços para cima. Abro a porta da frente. Me encosto na coluna do alpendre. Olho para o céu nublado, está com cara de chuva; e o vírus, mais antigo do que a memória, continua nas trincheiras desta manhã. Os Mortos de Joyce não saem da minha cabeça. Cada expressão, cada palavra, cada lágrima de Gretta me tocam. Olho as horas no celular. Deixo o alpendre e entro.

           Faço café rapidamente. Como cuscuz com frango e pimenta. O sol lá fora desaparece. A chuva cai como uma amante afetuosa sobre a manhã. Sento no sofá da sala-de-estar. Um vento meio frio entra de porta adentro, afaga meus braços e meus cabelos. Pego Joyce na estante, releio alguns trechos do conto. Uma história simples, nada parece acontecer de extraordinário. Na verdade, revela a matéria finita da existência e o fluxo do tempo. As recordações dos personagens irrompem e nos levam em suas águas correntes. Fecho o livro e vejo Gretta Conroy parada no meio da escada, escutando The Lass of Aughrim por uma voz plangente que vêm do andar de cima. Algo acontece nela ao ouvir aquela “música distante”. Vejo ela calada e alheia às conversas, com uma expressão melancólica no rosto, enquanto Gabriel a observa quieto no pé da escada. Conecto ao Youtube, assisto à mesma cena, perfeitamente reconstituída pelas mãos de John Huston. Talvez uma das melhores cenas que já vi no cinema. A expressão pujante do rosto de Angélica Houston, no papel de Gretta, revela as marcas de um passado, que se tornou cicatriz em seu corpo e em sua alma. Sinto suas lágrimas caírem sobre o lençol branco do tempo.

               Lá fora, a chuva pára, o sol surge timidamente, a manhã parece uma estampa melancólica. Invade os poros de minha consciência. Minhas próprias lembranças brotam como água de uma nascente e correm para além dos córregos. Como numa tela de tv led, os fragmentos de manhãs e noites vividas vêm se juntar nesta manhã de sábado. Num desses sábados de Hi-fi, vejo um solitário e tímido rapaz na Praça do Cruzeiro. De dentro da multidão, ele observa a mulher que ama encostada na entrada do Acri Clube. O olhar dela, a tez morena de sua pele, os seus cabelos pretos se projetam no espírito dele como num painel móvel de gravuras. Ele imagina convidando-a para dançar Save a prayer. Seu rosto de espinhas colado no rosto dela, a boca dele roçando a orelha dela. O gesto dos lábios de quem tem algo importante para dizer, tudo que um coração humano pudesse ouvir e sentir. O jovem solitário vê um cara chegar de motocicleta. O motoqueiro, de corpo largo e barba espessa, para ao lado dela. Ela se aproxima do motoqueiro. Ele a pega pela cintura e a abraça, cochicha em seu ouvido. Ela sorri e pula na garupa da motocicleta e vai embora de Itabi. O jovem solitário se dirige à budega de Sêo Nelson. Pede um copo cheio de domecq, vira o copo de vez, olha pro copo vazio e diz pra si mesmo: “ela vai embora, e eu fico aqui, preso a ela como um condenado sem culpa”. Paga a dose de domecq e sai em direção ao Acri Clube. O salão está cheio. Entra no salão e começa a dançar Boys don't cry, como se tivesse com o diabo no corpo.

                     Levanto-me do sofá e saio para fora. Olho mais uma vez para o céu. Meu olhar se detém no pé de alfazema ao lado. As abelhas e as borboletas, sem melancolia em um tempo sem-tempo, se banqueteiam em suas flores brancas. Vou até o portão. Me escoro nele e observo a rua por onde a vida passa sem ser vista. O vento sopra minhas memórias. Os mortos estão vivos dentro de mim. É impossível nos libertar deles. Estão gravados em nós como tatuagens. Respiro fundo, estendo as mãos como se quisesse segurar o vento e dominá-lo. Uma mulher passa pela rua, e uma outra, da sacada de uma casa, diz: “Olhe o vírus, mulher. Cadê a máscara!”.

                    Recolho os meus mortos e entro. Coloco uma dose de whisky e viro de uma vez. Horas depois, ligo o carro e saio em direção ao Centro da cidade. Os mortos adormecem em mim. Acelero e digo um grande “sim” a tudo que passou, abraço as sombras dos que se foram e dos que ainda estão aqui. O sol agora esquenta os ossos da cidade, o sopro quente do dia anima o meu espírito.