Panóptico

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A SIERGUÉI IESSIÊNIN (por Vladímir Maiakóvski)

Você partiu,

                 como se diz,
                                    para o outro mundo.
Vácuo. . .
             Você sobe,
                             entremeado às estrelas.
Nem álcool,
                 nem moedas.
Sóbrio.
           Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
                      não posso
                                     fazer troça, -
Na boca
             uma lasca amarga
                                        não a mofa.
Olho -
          sangue nas mãos frouxas,
você sacode
                  o invólucro
                                 dos ossos.
Sim,
       se você tivesse
                             um patrono no "Posto"(1) -

ganharia
            um conteúdo
                               bem diverso:
todo dia
            uma quota
                           de cem versos,
longos
          e lerdos,
                       como Dorônin(2).
Remédio?
               Para mim,
                               despautério:
mais cedo ainda
                        você estaria nessa corda.
Melhor
           morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
                   as razões
                                 desse impulso
nem o nó,
               nem a navalha aberta.
Pare,
        basta !
                   Você perdeu o senso? -
Deixar
          que a cal
                        mortal
                                  Ihe cubra o rosto?
Você,
         com todo esse talento
para o impossível;
                          hábil
                                  como poucos.
Por quê?
             Para quê?
                            Perplexidade.
- É o vinho!
                 - a crítica esbraveja.
Tese:
         refratário à sociedade.
Corolário: 
                muito vinho e cerveja.

Sim,
       se você trocasse
                                a boêmia
                                             pela classe;
A classe agiria em você,
                                    e Ihe daria um norte.
E a classe
                por acaso
                               mata a sede com xarope?
Ela sabe beber -
                        nada tem de abstêmia.
Talvez,
          se houvesse tinta
                                    no "Inglaterra"(3);
você
        não cortaria
                          os pulsos.
Os plagiários felizes
                              pedem: bis!
Já todo
           um pelotão
                           em auto-execução.
Para que
              aumentar
                            o rol de suicidas?
Antes
         aumentar
                       a produção de tinta!
Agora
         para sempre
                           tua boca
                                        está cerrada.
Difícil
        e inútil
                  excogitar enigmas.
O povo,
            o inventa-línguas,
perdeu
          o canoro
                       contramestre de noitadas.

E levam
             versos velhos
                                 ao velório,
sucata
          de extintas exéquias.
Rimas gastas
                    empalam
                                  os despojos, -
é assim
            que se honra
                                um poeta?
-Não
        te ergueram ainda um monumento -
onde
        o som do bronze
                                 ou o grave granito? -
E já vão
            empilhando
                             no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
                                   excremento.
Teu nome
               escorrido no muco,
teus versos,
                  Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
                 sob bétulas murchas -
"Nem palavra, amigo,
                               nem so-o-luço".
Ah,
      que eu saberia dar um fim
a esse
          Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
            - escândalo estridente:
- Chega
            de tremores de voz!
Assobios
             nos ouvidos
                              dessa gente,
ao diabo
             com suas mães e avós! 
Para que toda
                    essa corja explodisse
inflando
            os escuros
                            redingotes,
e Kógan(6)
               atropelado
                               fugisse,
espetando
                os transeuntes
                                      nos bigodes.
Por enquanto
                    há escória
                                    de sobra.
0 tempo é escasso -
                              mãos à obra.
Primeiro
             é preciso
                           transformar a vida,
para cantá-la -
                      em seguida.
Os tempos estão duros
                                   para o artista:
Mas,
        dizei-me,
                     anêmicos e anões,
os grandes,
                 onde,
                          em que ocasião,
escolheram
                  uma estrada
                                     batida?
General
            da força humana
                                     - Verbo -
marche!
            Que o tempo
                               cuspa balas
                                                 para trás,
e o vento
             no passado
                              só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
                   o planeta
                                 está imaturo.
É preciso
              arrancar alegria
                                     ao futuro.
Nesta vida
                morrer não é difícil.
O difícil
           é a vida e seu ofício.

(Tradução de Haroldo de Campos)

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1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.

2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).

3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.

4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantes
da homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.

5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.

6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.

 

CAMPOS, Augusto de, et al. Vladímir Maiakóvski. IN: Poesia russa moderna. Traduções de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2001.

OS USURPADORES RELIGIOSOS

Pablo Picasso









             


          Todo pastor e todo padre se apossam da psiquê do humano e o fragiliza para poder domesticá-lo como cordeiro e dominá-lo completamente. A neurose religiosa é o resultado de tais práticas por parte dos sacerdotes.

          Essa dominação simbólica e sutil acontece por meio de ferramentas psicológicas para causar o medo. O diabo é a ferramenta mais eficiente nesse sentido do que deus; este também sempre foi e é evocado para causar medo, por meio de castigos e penitências. Pecado, remissão, perdão, redenção e salvação são valores cristãos utilizados para a possessão do espírito do fiel a partir do uso do instrumento diabólico-divino pelos sacerdotes.

         Enfim, todo sacerdote é um usurpador psicoteológico, é um tirano que rouba e se apossa das almas e as fragiliza para tê-las em suas mãos mentirosas e falso-moralistas.


terça-feira, 24 de novembro de 2020

PASSAGENS (CONTO)

  Por Pirro


                 Eu ouço a chuva bater lá fora. São seis em ponto da manhã. Permaneço deitado por alguns minutos. Fui dormir incomodado com o conto de James Joyce. E amanheço com os “mortos” ao meu redor. Levanto da cama e me espreguiço. Escovo os dentes, lavo meu rosto. Saio para a sala, esticando os braços para cima. Abro a porta da frente. Me encosto na coluna do alpendre. Olho para o céu nublado, está com cara de chuva; e o vírus, mais antigo do que a memória, continua nas trincheiras desta manhã. Os Mortos de Joyce não saem da minha cabeça. Cada expressão, cada palavra, cada lágrima de Gretta me tocam. Olho as horas no celular. Deixo o alpendre e entro.

           Faço café rapidamente. Como cuscuz com frango e pimenta. O sol lá fora desaparece. A chuva cai como uma amante afetuosa sobre a manhã. Sento no sofá da sala-de-estar. Um vento meio frio entra de porta adentro, afaga meus braços e meus cabelos. Pego Joyce na estante, releio alguns trechos do conto. Uma história simples, nada parece acontecer de extraordinário. Na verdade, revela a matéria finita da existência e o fluxo do tempo. As recordações dos personagens irrompem e nos levam em suas águas correntes. Fecho o livro e vejo Gretta Conroy parada no meio da escada, escutando The Lass of Aughrim por uma voz plangente que vêm do andar de cima. Algo acontece nela ao ouvir aquela “música distante”. Vejo ela calada e alheia às conversas, com uma expressão melancólica no rosto, enquanto Gabriel a observa quieto no pé da escada. Conecto ao Youtube, assisto à mesma cena, perfeitamente reconstituída pelas mãos de John Huston. Talvez uma das melhores cenas que já vi no cinema. A expressão pujante do rosto de Angélica Houston, no papel de Gretta, revela as marcas de um passado, que se tornou cicatriz em seu corpo e em sua alma. Sinto suas lágrimas caírem sobre o lençol branco do tempo.

               Lá fora, a chuva pára, o sol surge timidamente, a manhã parece uma estampa melancólica. Invade os poros de minha consciência. Minhas próprias lembranças brotam como água de uma nascente e correm para além dos córregos. Como numa tela de tv led, os fragmentos de manhãs e noites vividas vêm se juntar nesta manhã de sábado. Num desses sábados de Hi-fi, vejo um solitário e tímido rapaz na Praça do Cruzeiro. De dentro da multidão, ele observa a mulher que ama encostada na entrada do Acri Clube. O olhar dela, a tez morena de sua pele, os seus cabelos pretos se projetam no espírito dele como num painel móvel de gravuras. Ele imagina convidando-a para dançar Save a prayer. Seu rosto de espinhas colado no rosto dela, a boca dele roçando a orelha dela. O gesto dos lábios de quem tem algo importante para dizer, tudo que um coração humano pudesse ouvir e sentir. O jovem solitário vê um cara chegar de motocicleta. O motoqueiro, de corpo largo e barba espessa, para ao lado dela. Ela se aproxima do motoqueiro. Ele a pega pela cintura e a abraça, cochicha em seu ouvido. Ela sorri e pula na garupa da motocicleta e vai embora de Itabi. O jovem solitário se dirige à budega de Sêo Nelson. Pede um copo cheio de domecq, vira o copo de vez, olha pro copo vazio e diz pra si mesmo: “ela vai embora, e eu fico aqui, preso a ela como um condenado sem culpa”. Paga a dose de domecq e sai em direção ao Acri Clube. O salão está cheio. Entra no salão e começa a dançar Boys don't cry, como se tivesse com o diabo no corpo.

                     Levanto-me do sofá e saio para fora. Olho mais uma vez para o céu. Meu olhar se detém no pé de alfazema ao lado. As abelhas e as borboletas, sem melancolia em um tempo sem-tempo, se banqueteiam em suas flores brancas. Vou até o portão. Me escoro nele e observo a rua por onde a vida passa sem ser vista. O vento sopra minhas memórias. Os mortos estão vivos dentro de mim. É impossível nos libertar deles. Estão gravados em nós como tatuagens. Respiro fundo, estendo as mãos como se quisesse segurar o vento e dominá-lo. Uma mulher passa pela rua, e uma outra, da sacada de uma casa, diz: “Olhe o vírus, mulher. Cadê a máscara!”.

                    Recolho os meus mortos e entro. Coloco uma dose de whisky e viro de uma vez. Horas depois, ligo o carro e saio em direção ao Centro da cidade. Os mortos adormecem em mim. Acelero e digo um grande “sim” a tudo que passou, abraço as sombras dos que se foram e dos que ainda estão aqui. O sol agora esquenta os ossos da cidade, o sopro quente do dia anima o meu espírito.


sábado, 10 de outubro de 2020

NADA É PARA SEMPRE (CONTO)

 

                                                                                               À memória de Meu Pai, Eurico.

              Passava pouco das oito da manhã. Meu pai selou Estrelante, um cavalo pé-duro, com quilômetros de cascos rodados, presente do meu avô para mim e meu irmão. Forrou a garupa com um coxim de algodão. Minha mãe se apoiou na crina do cavalo, passou o pé no estribo e montou na sela. Ela encostou o cavalo na calçada, pulei na garupa e me endireitei no coxim de algodão. Atravessamos a cancela e descemos a estrada naquela manhã de inverno.

           Era mês de maio, a estrada estava molhada, havia várias poças d’água ao longo dela. O Sol não ardia, parecia apenas um candeeiro por trás das nuvens. As rolinhas surgiam por sobre as campinas, um gavião-peneira surfava no céu, os tizius davam cambalhotas e cantavam nos cercados de arame. Os sertanejos preparavam suas roças para o plantio de milho e feijão. No inverno, o sertão se assemelhava a um paraíso úmido, verdejante, onde só a alegria, a inocência e a eternidade existiam.

        Depois de quarenta minutos, minha mãe entrou por uma porteira aberta. Notei que era a casa do Tio Artú. Vi algumas carroças atreladas a burros, cavalos apeados na sombra de dois juazeiros e nas estacas do aramado. Minha mãe parou Estrelante debaixo de um pé de jasmim branco, ao lado da casa de Tio Artú. Me segurou pelo braço e me ajudou a descer. Em seguida, ela desmontou e amarrou o cavalo. Passou as mãos pelos seus cabelos, assanhados pelo vento. Ajeitou os cabelos, me pegou pela mão e saímos em direção à casa. Era uma casa bem comprida, de taipa. Da frente até o monturo, havia girassóis enfileirados. As galinhas ciscavam sob os girassóis e ouvia-se gruídos de porcos no fundo da casa.

           Um grupo de pessoas proseavam no terreiro. Alguns homens estavam reunidos no telheiro. Minha mãe deu bom dia para eles e entrou, me puxando pela mão. Na sala, exalava um forte cheiro de jasmim. Minha mãe deu a benção e abraçou Tia Virgília, sentada numa cadeira, dentro de um vestido preto, sem alegria no rosto. Minha mãe foi se acomodar próxima à janela da sala. Fiquei ao lado dela, catando o enredo nos gestos e trejeitos. Dois homens estavam de pé, ao lado de um caixão de madeira, no centro da sala. Reunidas ao redor, dezenas de mulheres costuravam rezas. Os homens, com chapéus nas mãos, tinham expressões sérias e os olhos detidos no caixão. Dentro dele, Tio Artú, de camisa branca surrada da roça, com as mãos enlaçadas sobre o peito. Em seu rosto, nenhum sorriso, nenhuma expressão, parecia estar dormindo. Havia flores de jasmim branco arrumadas nas bordas do caixão e sobre Tio Artú.  As mulheres mais velhas, vestidas de preto, rezavam com os terços entre os dedos. Algumas choravam por trás de seus lenços. Os dois homens saíram em silêncio para o terreiro. Ao lado de minha mãe, ouvi um grito de oi, oi, seguido de um choro abafado. Vi uma mulher levando um lenço à boca, estendeu as mãos para o telhado e se calou. O coro de rezadeiras não deixava as ladainhas se perderem nas brechas da parede. Minha mãe não chorava, rezava batendo os lábios de leve, com o olhar pregado no chão de barro batido.

           As rezas e o cheiro do jasmim branco enchiam o ar da sala, enquanto o vento galopava lá fora. Depois de um tempo, deixei minha mãe, saí da sala na ponta dos pés, passei a porta e corri para perto de Estrelante. Fiquei ao lado dele. Segurei suas rédeas, passei minhas pequenas mãos pelo seu focinho, afaguei a estrela branca no meio da testa. Ele cheirou meus cabelos e senti seu bafo quente. No alto, os galhos do jasmim dançavam sobre nossas cabeças.

           Vi as pessoas se movimentando no terreiro, alguns homens entraram na sala. Minutos depois, seis deles saíram carregando o caixão fechado. Tio Artú lá dentro, em sua camisa branca surrada da roça, ornado com flores de jasmim. Atrás do caixão, se juntaram o restante dos homens e as mulheres. O caixão foi colocado em uma das carroças. Alguns subiram em carroças, outros montaram em seus cavalos. Seguiram a carroça que conduzia o caixão de madeira. Na saída da porteira, as mulheres retomaram as rezas e o cortejo desceu a estrada molhada naquela manhã de inverno. Minha mãe saiu para o terreiro. Corri até ela e disse:

           “Mãe, vamos pra casa, né!?”.

Ela me espiou por um instante, levantou a cabeça, caminhou até a porteira e parou, vendo o cortejo descendo a estrada. Deu meia volta e entrou na casa. Abraçou Tia Virgília, que não pôde seguir o cortejo. Se despediu dela, saiu da sala e fui atrás. Ela desamarrou Estrelante do pé de jasmim. Me pegou pelos sovacos e me jogou na garupa. Botou o pé no estribo e montou. Instigou Estrelante para fora da porteira, virou à esquerda e pegou o caminho de volta para casa. Quem prestasse atenção no rosto do garoto, sacudido pelo galope do cavalo, veria não só a satisfação da volta, mas uma expressão intrigada, um espanto do tamanho dele.


                                                         ***

         Três meses depois, quando o verão abria as suas portas, acordei com o berreiro das vacas e dos bezerros. Saí para fora. A luz do sol já se esparramava pelo terreiro e acariciava os espinhos do mandacaru, ao lado da nossa casa. Vi Zinho sobre a cancela do curral, assistindo meu pai tirar o leite das vacas, e Uísq deitado ao pé da cancela com o focinho sobre as patas.

           Entrei, calcei meu kichute e fui para o curral. Subi na cancela e fiquei ao lado de meu irmão. Meu pai soltou o bezerro, desapeou a vaca Lindaci, pegou o balde cheio de leite e veio depositar num vaso de latão, encostado no canto da cancela. Limpou o suor do rosto com a camisa, olhou pra nós e disse:

           “O cavalo de vocês está ali, deitado”.

           “Onde, pai”, perguntou Zinho.

           “Ali embaixo. No fundo do chafariz”.

           “O que ele tem, pai?”, perguntei.

           “Não sei. Deve ser dor de barriga!”

           “Vamo ver ele, Zinho!

           “Nico, vá pra lá não. Ele...”, meu pai se calou e saiu com a corda no ombro e o balde não mão, assobiando Triste Partida. Apeou Boa Sina, botou o bezerro para puxar o leite. Amarrou o bezerro no antebraço da vaca, pegou o banco e sentou nele, de frente para o ubro dela, de costas para nós. Colocou o balde entre suas pernas e começou a ordenhar.

          Desci da cancela em silêncio e saí para a estrada, Uísq colou do meu lado, abanando o rabo. Zinho cabrerou e ficou me olhando da cancela. Eu e Uísq descemos a estrada, correndo. Entramos no chafariz, ao lado da cerca do pasto de meu pai. Subi no chafariz, apurei a vista e apontei o dedo.

           “Ói ele ali, Uísq, detrás daquela moita de juazeiro”.

 Passamos debaixo do arame e seguimos pelo pangola. Acolá, as espanta-boiadas chiavam ruidosamente, o sol subia radiando sua luz por sobre o campo. Contornamos a moita do juazeiro, vimos Estrelante arriado sobre o pangola. Uísq farejou seu pelo castanho e ficou me observando.  Andei em torno do velho cavalo. Parei na frente dele. Sentei no capim, Uísq encostou do meu lado. Toquei nas ventas do cavalo, respirava com dificuldade. Afaguei sua grande testa, sua estrela branca no meio dela. Seu olho parecia contemplar o céu azul da manhã. Um olhar fixo, impassível e calmo. Me perguntei se ele sabia o que estava acontecendo, se via alguma coisa, por que não se erguia e saía galopando. Ele tentou levantar a cabeça, parecia sem forças. Observava ele sem poder fazer nada. Lembrei dos momentos bons que vivemos juntos, desde o dia em que meu avô tinha deixado conosco. A pesar de velho, não era manhoso nem preguiçoso. Era um cavalo útil para os pequenos afazeres e as pequenas viagens, além de fazer a alegria dos garotos.

          Toquei de novo em suas ventas, não senti o bafo quente, não senti mais bafo nenhum. De novo, examinei seu olho aberto, parecia fixar o infinito. Era como se ele estivesse mirando para dentro do universo, para uma terra desconhecida, com um sentimento de comunhão fatalista. Não havia rezas fúnebres, não havia medo, nem despedida no seu globo ocular. Tive a impressão de que aquele olhar me ensinava algo sutil, que não pude captar de vez. Mas captei o suficiente para intuir, através dele, que nada dura como duram as pedras da estrada.

           Me pus de pé e ergui a cabeça. Vi o telhado da minha casa, a fumaça saindo da chaminé. Ouvi a voz rouca de meu pai, entoando uma cantiga no curral. Olhei uma vez mais para Estrelante, ali deitado em sua paz. Dei meia volta e Uísq me acompanhou. Pegamos a vareda e saímos no chafariz.

           Subi a estrada devagar, com Uísq ao meu lado, sentindo uma tristeza agarrada nos cabelos, como se fosse arapuá. Fui chutando uma pedrinha aqui, chutando uma ali e outra acolá. Catei algumas no chão e sai lançando as pedrinhas por cima do arame farpado, entre os arranhentos. Para além de onde elas caíam, o sertão começava a perder o encanto da terra verdejante.