Panóptico

sábado, 29 de janeiro de 2022

ERA UM SÁBADO À NOITE (Por Pirro)

Noite estrelada, de Van Gogh (1889)
                    "Noite estrelada", de Van Gogh (1889)

           Logo que entrei, um sujeito de gravata amarela, terno verde e calça azul, cresceu o olho para a estampa da minha camisa. Ele parecia a ordem e o progresso em pessoa. Não usava máscara.

            “Você gosta dos Beatles!”

            “Ouço algumas coisas deles”.

            “Sou fanzaço dos Beatles”

            “Massa”.

            “Você foi ao show de Paul McCartney”.

            “Fui, não. Assisti pela tv”.

            “Fui para dois shows dele. Em Buenos Aires e em Londres”.

            “Massa”.

            “Fiz inveja a você agora, não foi?!”, perguntou com um ar de riso.

            “Fez não... rsrsrsr”. Meu riso era o de quem não esperava que a noite fizesse surgir uma estrela, ali em minha frente.

            Ele chamou uma mulher de vestido vermelho e salto alto, que parecia ser sua esposa.

            “Moema, vem cá. Fiz inveja pra ele agora. Disse-lhe que fui em dois shows do Paul McCartney, e ele nunca foi”. O cara abriu um sorriso do tamanho da praia dos Náufragos.

            “Tá vendo! Ele está podendo, viu. Fez inveja para você” disse a mulher.

            “Porra nenhuma. Minha banda preferida é The Doors”, respondi para ela.

            Ele se aproximou.

            “The Dɔɔɔɔrs!”, exclamou esticando o som da vogal para inglês ver. “The Dɔɔɔɔrs... só gosto de Light my fire. Jim Morrison era apenas bonito”.

        “Morrison era um grande poeta e sua voz tinha uma pegada visceral, dionisíaca, lisérgica”. falei encarrilhando os adjetivos.

           “Jim Morrison era infantil”, disse ele. A dama de vermelho riu e puxou-o pelo braço:         “Vamos tirar selfies para os stories em frente àquelas flores”. A meio caminho, ele voltou-se para trás e acrescentou:

            “Gosto de Paul MacCartney. Ele é mais músico. Morrison é um drogado”.

         Não disse nada. Fiquei parado ali, com um riso plantado no rosto, olhando em silêncio aquele personagem interessante. Sabe, minha esposa teve que me arrastar de casa. Eu não queria sair, planejava assistir um bom filme no sábado à noite, ficar longe de aglomeração, evitar o vírus. Solange insistiu igual água em pedra dura. Ela disse que eu usaria máscara, levaria álcool 70 para as mãos, e álcool bem gelado para passar na garganta. Eu tinha que ir com ela para a colação de grau de Mirenna. “Você vai dirigindo”, falei. Ela concordou com ressalvas: “Tudo bem, mas vou no meu ritmo”. “Ok, vá no seu ritmo”. Esperava uma noite chata me aguardando. Eis que, de repente, surge o personagem. Agradeci à Solange por ter me tirado de casa.

       A Mansion estava enchendo de gente. O salão lotado seria celebração para o coronavírus. Saí do salão. Me dirigi ao local onde estava estacionado o carro, a três quarteirões do evento. Ao me aproximar, ouvi a voz do flanelinha ralhando com alguém:

            "Oião, miseráve, uzurento”, repetia sem parar.

          Abri a porta do carro e acendi a luz interna. Peguei o gelo e as cervejas que havia comprado em um depósito de bebidas no Orlando Dantas. Abri a mala, pus o gelo e as cervejas num saco plástico e deixei nela. O vento do Atlântico trazia e levava o bater das ondas, o barulho dos carros e a voz do flanelinha.

            "Oião, Miseravi, uzurento. Não deixa um carro pra eu, nada...".

          Fechei a mala. Peguei uma cerveja do isopor no piso do carro. Sentei no banco do motorista. Abri a latinha de heinenken. Acendi um cigarro chesterfield. Liguei o som. Ouro de tolo começou a fluir como as ondas da Praia dos Náufragos.


Eu devia estar contente

Porque eu tenho um emprego

Sou o dito cidadão respeitável

E ganho quatro mil cruzeiros por mês...

          Passei alguns minutos sentado, atento à poesia de Raul. Fiquei de pé, encostado na porta, fumando meu chesterfield e olhando para dentro do Mar Atlântico. Além dos confins da praia, via-se as plataformas de petróleo. Lá em cima, a lua cheia por trás de algumas nuvens, e dava para ver algumas estrelas, talvez fosse Saturno, Vênus ou Júpiter. Aqui embaixo, era o vírus, a colação de grau, as alegrias dos formandos e a voz do flanelinha:

            "Oião, miseravi, infiliz. Da próxima vez, chego cedo, aí quero ver qual moleque vai tirar de doido”, dizia a voz do outro lado da praia. "Oião, Miseravi, ingrato...".

            O flanelinha, para quem paguei 10 reais, passava em frente. Olhou para mim.

            “E aí, brother, beleza?”. Ele se aproximou.

            “Beleza”.

            “Qual o seu nome?”

            “Bio”.

            “Com quem ele está irado?” perguntei.

            “Comigo, patrão. É meu irmão mais novo”.

            “Parece que ele quer briga”, falei para Bio, já parado ao meu lado.

            “Que nada, patrão. Ele é inxamista. Tá cum ciúme”.

            “Ah!”.

            “Meus amigos vêm tirar uma grana aqui. Aí ele fica impricando, me xingando”.

           “Oião, Miseravi, uzurento. Da próxima, o melhor local será o meu.  Vou chegar cedo. quero ver quem vai me tirar. Quero ver!”. Levantei a vista. O irmão de Bio estava com o touro no calor do corpo. Andava de um lado a outro num trecho da rodovia, onde demarcou como seu estacionamento particular. Pelo visto, era o trecho menos privilegiado, pois os motoristas preferiam as vagas mais próximas do evento. Enquanto ele falava, agitava a flanelinha com uma mão e indicava as vagas para os carros que passavam.

            “Oião, Miseravi, uzurento...".  Seu refrão se chocava com o vento, enquanto o mar Atlântico rugia à nossa frente. Bio saiu correndo para atender um motorista, que procurava uma vaga em frente ao Hotel Tropical. Ainda chegava mais gente para o evento. Mulheres e homens, jovens e crianças, em roupas devidamente escolhidas para a ocasião.

            Sequei a latinha de cerveja. Peguei outra, desliguei o som, fechei e travei as portas do carro, bebi mais um gole de cerveja e saí andando. Parei na entrada da Mansion Eventos. Bebi outro gole de cerveja. Já não ouvia mais o bater das ondas na praia dos Náufragos. Já não ouvia a voz agitada do irmão de Bio. Entrei para o pátio lotado de veículos. Fiquei a 15 metros do portão principal. Me encostei no fundo de um carro. Ao lado, alguns homens e algumas mulheres conversavam. A certa distância, três deles de meia idade fumavam cigarro em silêncio. Suas máscaras estavam arriadas debaixo do queixo.

            “É bonito de se ver. É uma alegria só”, disse uma mulher já idosa.

            “Bonito é, mas não vejo futuro”, disse um jovem de trinta e poucos anos, metido num terno bem justo.

            “Também não”, concordou outro.

            “Pra mim, medicina e direito ainda são os cursos”. Disse uma jovem elegantemente vestida.

            “É verdade”.

          “Agradeço a Deus de ter feito direito”, disse ela. Enquanto falava, viajava pelas bolhas sociais num celular de última geração.

            Solange apareceu no hall de entrada. Ao me ver, se aproximou.

            “Dario quer uns goles de Pitú. Você trouxe?”

            “Não”.

            “Ele disse que só sobe no palco pra comemorar com Mirenna, se beber três doses de uma vez”.

            “Aí, fudeus!”

       “Parece doença, né. Se encher de cachaça, pra se se soltar. Vou dizer, viu”, disse Solange.

            “Se eu soubesse, teria colocado numa garrafinha de água mineral”.

            “Mas eu falei, você que esqueceu... Mas, tá bom. Ele vai ter que se virar nos trinta”.

            “Oh!”.

         Acendi outro cigarro. Solange olhou o celular. Viu algumas mensagens e fotos do evento no whatsap.

            “Já são 9:40. Dario e Cris vão subir no palco. Você vai ficar aqui fora?”.

            “Vou”.

            “Ok, vou entrar”.

            “Viu”.

            Solange recolocou a máscara e saiu no ritmo de mulher do sertão.

          Bebi mais um gole de cerveja, dei o último trago no chesterfield. Lá dentro, o pagode, o funk desfunkeado, o sertanejo urbano, o forró eletrônico, o arrocha. Eu senti o poder que aqueles sons tinham sobre mim. A vontade era de me mandar dali, de ir embora para casa. Como eu estava no ritmo de Solange, tive de resistir. Recoloquei a máscara e entrei no salão. Toda essa diluição de sons ditava a trilha sonora que se misturava com palmas, gritaria e apitos ensurdecedores.

         No exato momento que entrei, os pais da Mirenna subiram no palco. Foi a vez da Dario e Cris, foi a vez da família fazer barulho. O Coordenador de Nutrição felicitou os pais e agradeceu em nome da Tiradentes. Depois, entregou o canudo para Dario e Cris. Cris pegou o canudo e deu para a filha. Começaram a dançar com alegria e abraços. Dario parecia o homem de lata. Não dançava. De corpo duro, só dobrava os joelhos e vibrava as mãos lá no alto. Uma dose de cachaça faria dele o melhor malabarista e o melhor palhaço do Circo Maximus. A mãe da formanda dançava com desenvoltura ao lado do homem de lata, mas sem ousar demais. Mirenna estava bem alegre, ao lado deles, com o canudo na mão. Rindo de Dario, me dirigi ao mictório. Estava aperreado, a bexiga pedindo para ser esvaziada.

            A meio caminho, lá estava ele saindo do mictório, o personagem ajeitando a gravata, passando a mão no cabelo, sem máscara. Quando deu por mim, abriu o sorriso e limpou o nariz com os dedos.

            “Diga, black man”.

         “Diga”. Ele riu, limpou o nariz e ficou sério. Me observou, mas sem aquele brilho quando estava com a dama de vermelho.

            “Você de preto assim parece um anticristo”.

            “Sou o próprio anticristo”, falei com a bexiga já implorando.

            “E, pelo jeito, você é de esquerda. Acertei?”

            “Na mosca”, disse eu.

        “Não falei”, limpou o nariz, soltou a gaitada dos homens seguros no que falam e arrematou: “a esquerda tem que desaparecer”.

            Bati palmas para o personagem. Ele riu, limpou o nariz e ficou sério.

            “Black man, você já foi na Inglaterra, nos Estados Unidos, hein Blæeek man?”

            “Nunca”.

            “Só quero dizer, black man, que são uma maravilha, o cidadão é livre, é empreendedor de seu próprio caminho, sem a chatice do Estado na sua cola”.

       “Cada um por si. O resto que se foda. Né isso!”. A minha bexiga estava quase explodindo.

            “Exatamente”. Riu de novo, limpou o nariz e ficou sério.

        “Você me lembra o bicho-do-cesto. Só que a cor do seu casulo é verde, azul e amarelo”.

            “Como?!” fez ele, depois abriu a cancela: “kkkkkkkkkkkkk...”. Apontou o indicador para mim: “Blæek man, Jim Morrison só tinha beleza”. Me observou de esguelha, limpou o nariz e se afastou. Virei as costas, entrei correndo no mictório masculino.

            Lá pelas 22:20, a cerimônia acabou. Eu e Solange seguimos para o carro. O irmão de Bio agora falava algumas palavras em voz baixa. Parecia mais tranquilo. Solange assumiu o volante. Bio correu para orientá-la. Pedi a Bio para se aproximar.

            “Tome conta de seu irmão, cara. Mande ele esfriar a cabeça”.

            “Já dei a ideia, patrão! Ele não me ouve, patrão”.

            “Bio, olhe pra mim. Eu tenho cara de patrão?”.

            Ele riu, sacudindo a flanelinha vermelha de um lado para outro.

            “Tem não”.

            “Pois é”.

        “Foi mal, meu bródi. Valeu aí”, disse, mostrando o polegar apontado para o céu. Retribuí com o mesmo gesto. Bio parou o trânsito da via, com a flanelinha vermelha estendida acima da cabeça. Saímos do estacionamento. Falei para Solange seguir em frente e pegar um atalho para entrar na Rodovia dos Náufragos. Ela acelerou no ritmo dela e coloquei “The End” no toca-cd.

          Da rodovia dos Náufragos, seguimos para a Zona Norte. Chegamos ao Bugio às 11:00. A varanda da casa de Dario estava pronta para receber os convidados. Apenas parentes do círculo familiar. Peguei as cervejas e o gelo, coloquei no isopor térmico de Dario, que estava num canto da parede. Cadeiras e mesas foram ocupadas. Uns começaram a beber cervejas, outros a comerem doces e salgadinhos com refrigerante. Dario foi o primeiro a meter duas doses seguidas de Pitú garganta abaixo. Não fez careta nem pigarreou.

            “Dario, o que aconteceu lá no palco?” Ele riu.

            “Fiquei acanhado, ói. Nunca tinha ido num negócio desse, ói...”.

            “Acontece”.

            “Solange não levou o meu Pitú. Me lasquei”.

            “Acontece”.

            Abri minha cerveja, e me sentei a uma mesa onde estava Solange, minha sogra e Maria. “Cara, nutricionista gorda não cai bem”. Solange disse.

            “Por que?”, perguntou a irmã de Solange.

            “Vi uma lá. Maria, ela precisa se cuidar. Ninguém vai procurar nutricionista que não se cuida”.

            “Ah, entendi”, expressou a irmã de Solange.

            “Ouço as conversas na equipe dos Runners team. Todo mundo fala, Maria”.

            “Realmente. Não cola, não”, disse a irmã.

        O pai do namorado de Mirenna ligou uma caixa de som, acionou o karaokê do Youtube. Começou a cantar “Sábado”, de José Augusto. Cantava de cabeça meio baixa, acompanhando a letra pelo celular. Ele parecia um artista instrospectivo cantando apenas para si. Solange arrastou Dona Guida para dançar. Quando chegou no refrão de “Sábado”, o coro das mulheres acompanhou o simpático artista.


Eu já tentei

Fiz de tudo pra te esquecer

Eu até encontrei prazer

Mas ninguém faz como você

Quanta ilusão

Ir pra cama sem emoção...

            O cantor instropecto emendou “Em plena lua de mel”, de Reginaldo Rossi.


Toda vez que o seu namorado sai,

Você vai ver outro rapaz.

Olha todo mundo está comentando:

Seu cartaz tá aumentando...


            Maria lembrou logo do casamento de seu primo, no Povoado Várzea Nova.

       “Nunca me esqueço. Escolheram justamente essa música. Zé gostava muito dessa música”.

        “Como é que bota uma música dessa em pleno casamento! Quem já se viu!”, disse minha sogra.

          “Ele mesmo colocou. Ele gostava muito. Na casa dele, era a que mais se ouvia”.

         “Eu lembro. Mataram um porco, muita bebida quente, cerveja... fizeram a maior festa”.

            “Falaram que ele tinha enchido o cu de cachaça no dia”.

            “O povo diz que ela voou de moto até Glória, e traiu ele em plena lua de mel”, disse Maria.

            “E, realmente, o casamento não deu certo”, arrematou Solange.

            Mirenna chegou até a mesa onde estávamos:

            “Acabaram de matar um flanelinha lá na praia, perto da Mansion Eventos”.

            “Você viu onde?” perguntou Maria.

        “No Insta do Gordinho do Povo. Parece que um irmão matou o outro. Foi o que disseram nos comentários”, acrescentou Mirenna para os que estavam sentados à mesa.

            “Viixe. Não suporto esse Gordinho”, disse Solange.

            “Também não. Ele é um abutre, um Dantena, um Bareta das redes sociais”, falei.

            O cantor pegou o microfone de volta, e ele me surpreendeu pela escolha. Ao som de “Ouro de tolo”, me levantei da cadeira, peguei uma heineken e saí para a rua. Fiquei na calçada, acendi um cigarro, traguei e soltei a fumaça, que desapareceu para além dos postes de luz e telhados de concreto.