Panóptico

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

KAFKA E O PAI – por Andrei Albuquerque


Kafka, por Robert Crumb
     Ler “Carta ao pai” de Franz Kafka é presenciar um pungente relato autobiográfico que inicialmente foi escrito para ser entregue ao pai do escritor e não para o prelo.  Ao alcançar a publicação, a carta se tornou uma peça literária de valor perene, embora houvesse sido dirigida a Hermann Kafka, pai do escritor. Esta famosa missiva pode servir como possível chave para a obra de Kafka, pois sua leitura esclarece e enriquece o que se buscava na obra do autor.
     A presença do pai do escritor era esmagadora em sua vida; Kafka, em sua carta, destila traumas e mágoas até alcançar o ponto de um queixume burlesco – até risível, mas que sob a pena brilhante do mestre tcheco ganha valor literário além das lamentações comuns.  Porém, há também amor e admiração pelo pai como se ele fosse uma figura onipresente, mas inalcançável. Após a leitura da carta, resta a impressão indelével a respeito da marca da relação entre filho e pai na obra de Kafka; claro que a questão do poder opressivo e sufocante presente em obras como “O processo” e “O castelo” está muito além de uma superficial e reducionista leitura das relações do escritor com seu pai – a tendência a empreender uma leitura meramente edípica deve ser tomada com reservas. O escritor também era um judeu que conhecia de perto a realidade do gueto e da exclusão social.
Há em Kafka o pesadelo do poder burocrático que oprime. Todavia, obras como o inacabado “O castelo” e “O processo” podem ser lidas sob uma perspectiva existencial; contudo, ambas não são excludentes, sendo a força metafórica da obra do escritor tcheco inesgotável. Modesto Carone, ensaísta e tradutor de Kafka, lembra que “O castelo”, primeiramente, recebeu a intepretação teológica de Max Brod (amigo e editor de Kafka) que enxergava nesse romance uma busca mística por Deus. Outro exemplo, que pode ser fértil em interpretações, é o conto “Comunicação a uma academia” – que foi adaptado para o teatro – relata a história de um chimpanzé que foi “humanizado” e, por isso, perde algo de sua inocência selvagem para adotar as idiossincrasias humanas e também suas torpezas.
No entanto, novelas como “O veredicto” (1912) e “A metamorfose” (1912) mostram mais claramente a questão de uma sensação de inadequação familiar. A descrição de Kafka do mal-estar de seus personagens é forte e ácida. O famigerado personagem principal de “A metamorfose”, Gregor Samsa, o homem que acorda transformado em inseto passa toda a narrativa preso na residência familiar, enfrentando a estranheza de sua transformação e o asco de sua família ao vê-lo em sua nova condição. A comunicação entre o Gregor inseto e sua família se torna ainda mais difícil; ao poucos o inseto isolado definha e morre. A irmã tenta compreender Gregor, mas o pai apenas adota uma posição de repulsa e incompreensão. Outrossim, vale lembrar que antes de se tornar inseto, Samsa era arrimo de família, pois seu pai estava aposentado. A nova condição de inseto do filho deixa o pai furibundo por que teria que voltar a trabalhar e sustentar a família.
Além das considerações existenciais que possam ser aplicadas ao homem-inseto, há a situação absurda e terrível de seu personagem em relação à sua família; talvez aí encontremos ecos da relação entre Kafka e seu pai. Não que se deva tentar reduzir a preciosidade áspera do romance a uma fácil interpretação edípica; no entanto, não se deve desconsiderá-la, pois é notória a influência da relação de Kafka com seu pai em sua obra. E “Carta ao pai” releva, pelo seu caráter autobiográfico, o ódio e aversão que não deixam de estar fusionados com o amor e a admiração de um filho pelo seu autoritário pai – o pai terrível de Kafka também é sumamente admirado. Talvez o exemplo mais vívido seria a novela “O veredito” (1912) na qual há o claro conflito entre o personagem Georg Bendemann e seu viúvo pai .
Há, nessa “carta”, a purulência do escritor na consideração de si. Porém, todo o aviltamento de si parece servir para enaltecer Hermann Kafka, tornando esse pai um ser tentacular que o escritor, fantasiosamente, imaginava deitado sobre o mapa-múndi. O escritor David Zane Mairowitz que assina o texto – na biografia ilustrada (em quadrinhos) Kafka de Robert Crumb – acredita que o pavor de Kafka frente às relações de poder teria sua origem no convívio com seu temido pai. Na carta, o escritor dispara ao falar de si e do pai: “Eu magro, fraco, franzino, tu forte, grande, possante”. Quando adulto, Franz Kafka ainda sofria com as admoestações de seu pai que tinha fama de ser um patrão hostil que atormentava a vida de seus funcionários. Curiosamente, o autor da “carta” não recordava de ter sido insultado diretamente pelo pai, mas afirmava que havia outros meios de o pai ter agredido a ele e suas irmãs – o comportamento irascível paterno, talvez, seria o meio que mais afligisse a Franz.
A autocomiseração do autor, na carta, tangencia o insuportavelmente risível, mas também o torna mais agressivo por que este estado de autopiedade seria culpa do pai. Não obstante, esse pai temível e autoritário está deformado pelas das construções psíquicas do autor que, esplendidamente, se manifestam ao longo de sua fantástica obra.
Em suma, qualquer interpretação – oriunda de uma vasta fortuna crítica – permanecerá aquém da obra de Kafka.

Fonte: http://www.noticiasaju.com.br/artigos.asp?id_artigo=394

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