Panóptico

sábado, 10 de outubro de 2020

NADA É PARA SEMPRE (CONTO)

 

                                                                                               À memória de Meu Pai, Eurico.

              Passava pouco das oito da manhã. Meu pai selou Estrelante, um cavalo pé-duro, com quilômetros de cascos rodados, presente do meu avô para mim e meu irmão. Forrou a garupa com um coxim de algodão. Minha mãe se apoiou na crina do cavalo, passou o pé no estribo e montou na sela. Ela encostou o cavalo na calçada, pulei na garupa e me endireitei no coxim de algodão. Atravessamos a cancela e descemos a estrada naquela manhã de inverno.

           Era mês de maio, a estrada estava molhada, havia várias poças d’água ao longo dela. O Sol não ardia, parecia apenas um candeeiro por trás das nuvens. As rolinhas surgiam por sobre as campinas, um gavião-peneira surfava no céu, os tizius davam cambalhotas e cantavam nos cercados de arame. Os sertanejos preparavam suas roças para o plantio de milho e feijão. No inverno, o sertão se assemelhava a um paraíso úmido, verdejante, onde só a alegria, a inocência e a eternidade existiam.

        Depois de quarenta minutos, minha mãe entrou por uma porteira aberta. Notei que era a casa do Tio Artú. Vi algumas carroças atreladas a burros, cavalos apeados na sombra de dois juazeiros e nas estacas do aramado. Minha mãe parou Estrelante debaixo de um pé de jasmim branco, ao lado da casa de Tio Artú. Me segurou pelo braço e me ajudou a descer. Em seguida, ela desmontou e amarrou o cavalo. Passou as mãos pelos seus cabelos, assanhados pelo vento. Ajeitou os cabelos, me pegou pela mão e saímos em direção à casa. Era uma casa bem comprida, de taipa. Da frente até o monturo, havia girassóis enfileirados. As galinhas ciscavam sob os girassóis e ouvia-se gruídos de porcos no fundo da casa.

           Um grupo de pessoas proseavam no terreiro. Alguns homens estavam reunidos no telheiro. Minha mãe deu bom dia para eles e entrou, me puxando pela mão. Na sala, exalava um forte cheiro de jasmim. Minha mãe deu a benção e abraçou Tia Virgília, sentada numa cadeira, dentro de um vestido preto, sem alegria no rosto. Minha mãe foi se acomodar próxima à janela da sala. Fiquei ao lado dela, catando o enredo nos gestos e trejeitos. Dois homens estavam de pé, ao lado de um caixão de madeira, no centro da sala. Reunidas ao redor, dezenas de mulheres costuravam rezas. Os homens, com chapéus nas mãos, tinham expressões sérias e os olhos detidos no caixão. Dentro dele, Tio Artú, de camisa branca surrada da roça, com as mãos enlaçadas sobre o peito. Em seu rosto, nenhum sorriso, nenhuma expressão, parecia estar dormindo. Havia flores de jasmim branco arrumadas nas bordas do caixão e sobre Tio Artú.  As mulheres mais velhas, vestidas de preto, rezavam com os terços entre os dedos. Algumas choravam por trás de seus lenços. Os dois homens saíram em silêncio para o terreiro. Ao lado de minha mãe, ouvi um grito de oi, oi, seguido de um choro abafado. Vi uma mulher levando um lenço à boca, estendeu as mãos para o telhado e se calou. O coro de rezadeiras não deixava as ladainhas se perderem nas brechas da parede. Minha mãe não chorava, rezava batendo os lábios de leve, com o olhar pregado no chão de barro batido.

           As rezas e o cheiro do jasmim branco enchiam o ar da sala, enquanto o vento galopava lá fora. Depois de um tempo, deixei minha mãe, saí da sala na ponta dos pés, passei a porta e corri para perto de Estrelante. Fiquei ao lado dele. Segurei suas rédeas, passei minhas pequenas mãos pelo seu focinho, afaguei a estrela branca no meio da testa. Ele cheirou meus cabelos e senti seu bafo quente. No alto, os galhos do jasmim dançavam sobre nossas cabeças.

           Vi as pessoas se movimentando no terreiro, alguns homens entraram na sala. Minutos depois, seis deles saíram carregando o caixão fechado. Tio Artú lá dentro, em sua camisa branca surrada da roça, ornado com flores de jasmim. Atrás do caixão, se juntaram o restante dos homens e as mulheres. O caixão foi colocado em uma das carroças. Alguns subiram em carroças, outros montaram em seus cavalos. Seguiram a carroça que conduzia o caixão de madeira. Na saída da porteira, as mulheres retomaram as rezas e o cortejo desceu a estrada molhada naquela manhã de inverno. Minha mãe saiu para o terreiro. Corri até ela e disse:

           “Mãe, vamos pra casa, né!?”.

Ela me espiou por um instante, levantou a cabeça, caminhou até a porteira e parou, vendo o cortejo descendo a estrada. Deu meia volta e entrou na casa. Abraçou Tia Virgília, que não pôde seguir o cortejo. Se despediu dela, saiu da sala e fui atrás. Ela desamarrou Estrelante do pé de jasmim. Me pegou pelos sovacos e me jogou na garupa. Botou o pé no estribo e montou. Instigou Estrelante para fora da porteira, virou à esquerda e pegou o caminho de volta para casa. Quem prestasse atenção no rosto do garoto, sacudido pelo galope do cavalo, veria não só a satisfação da volta, mas uma expressão intrigada, um espanto do tamanho dele.


                                                         ***

         Três meses depois, quando o verão abria as suas portas, acordei com o berreiro das vacas e dos bezerros. Saí para fora. A luz do sol já se esparramava pelo terreiro e acariciava os espinhos do mandacaru, ao lado da nossa casa. Vi Zinho sobre a cancela do curral, assistindo meu pai tirar o leite das vacas, e Uísq deitado ao pé da cancela com o focinho sobre as patas.

           Entrei, calcei meu kichute e fui para o curral. Subi na cancela e fiquei ao lado de meu irmão. Meu pai soltou o bezerro, desapeou a vaca Lindaci, pegou o balde cheio de leite e veio depositar num vaso de latão, encostado no canto da cancela. Limpou o suor do rosto com a camisa, olhou pra nós e disse:

           “O cavalo de vocês está ali, deitado”.

           “Onde, pai”, perguntou Zinho.

           “Ali embaixo. No fundo do chafariz”.

           “O que ele tem, pai?”, perguntei.

           “Não sei. Deve ser dor de barriga!”

           “Vamo ver ele, Zinho!

           “Nico, vá pra lá não. Ele...”, meu pai se calou e saiu com a corda no ombro e o balde não mão, assobiando Triste Partida. Apeou Boa Sina, botou o bezerro para puxar o leite. Amarrou o bezerro no antebraço da vaca, pegou o banco e sentou nele, de frente para o ubro dela, de costas para nós. Colocou o balde entre suas pernas e começou a ordenhar.

          Desci da cancela em silêncio e saí para a estrada, Uísq colou do meu lado, abanando o rabo. Zinho cabrerou e ficou me olhando da cancela. Eu e Uísq descemos a estrada, correndo. Entramos no chafariz, ao lado da cerca do pasto de meu pai. Subi no chafariz, apurei a vista e apontei o dedo.

           “Ói ele ali, Uísq, detrás daquela moita de juazeiro”.

 Passamos debaixo do arame e seguimos pelo pangola. Acolá, as espanta-boiadas chiavam ruidosamente, o sol subia radiando sua luz por sobre o campo. Contornamos a moita do juazeiro, vimos Estrelante arriado sobre o pangola. Uísq farejou seu pelo castanho e ficou me observando.  Andei em torno do velho cavalo. Parei na frente dele. Sentei no capim, Uísq encostou do meu lado. Toquei nas ventas do cavalo, respirava com dificuldade. Afaguei sua grande testa, sua estrela branca no meio dela. Seu olho parecia contemplar o céu azul da manhã. Um olhar fixo, impassível e calmo. Me perguntei se ele sabia o que estava acontecendo, se via alguma coisa, por que não se erguia e saía galopando. Ele tentou levantar a cabeça, parecia sem forças. Observava ele sem poder fazer nada. Lembrei dos momentos bons que vivemos juntos, desde o dia em que meu avô tinha deixado conosco. A pesar de velho, não era manhoso nem preguiçoso. Era um cavalo útil para os pequenos afazeres e as pequenas viagens, além de fazer a alegria dos garotos.

          Toquei de novo em suas ventas, não senti o bafo quente, não senti mais bafo nenhum. De novo, examinei seu olho aberto, parecia fixar o infinito. Era como se ele estivesse mirando para dentro do universo, para uma terra desconhecida, com um sentimento de comunhão fatalista. Não havia rezas fúnebres, não havia medo, nem despedida no seu globo ocular. Tive a impressão de que aquele olhar me ensinava algo sutil, que não pude captar de vez. Mas captei o suficiente para intuir, através dele, que nada dura como duram as pedras da estrada.

           Me pus de pé e ergui a cabeça. Vi o telhado da minha casa, a fumaça saindo da chaminé. Ouvi a voz rouca de meu pai, entoando uma cantiga no curral. Olhei uma vez mais para Estrelante, ali deitado em sua paz. Dei meia volta e Uísq me acompanhou. Pegamos a vareda e saímos no chafariz.

           Subi a estrada devagar, com Uísq ao meu lado, sentindo uma tristeza agarrada nos cabelos, como se fosse arapuá. Fui chutando uma pedrinha aqui, chutando uma ali e outra acolá. Catei algumas no chão e sai lançando as pedrinhas por cima do arame farpado, entre os arranhentos. Para além de onde elas caíam, o sertão começava a perder o encanto da terra verdejante.

           


 

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