À memória de Meu Pai, Eurico.
Passava pouco das oito da manhã. Meu
pai selou Estrelante, um cavalo pé-duro, com quilômetros de cascos rodados,
presente do meu avô para mim e meu irmão. Forrou a garupa com um coxim de
algodão. Minha mãe se apoiou na crina do cavalo, passou o pé no estribo e
montou na sela. Ela encostou o cavalo na calçada, pulei na garupa e me
endireitei no coxim de algodão. Atravessamos a cancela e descemos a estrada
naquela manhã de inverno.
Era mês de maio, a estrada estava molhada, havia várias poças d’água ao longo dela. O Sol não ardia, parecia apenas um candeeiro por trás das nuvens. As rolinhas surgiam por sobre as campinas, um gavião-peneira surfava no céu, os tizius davam cambalhotas e cantavam nos cercados de arame. Os sertanejos preparavam suas roças para o plantio de milho e feijão. No inverno, o sertão se assemelhava a um paraíso úmido, verdejante, onde só a alegria, a inocência e a eternidade existiam.
Depois de quarenta minutos, minha mãe entrou por uma porteira aberta. Notei que era a casa do Tio Artú. Vi algumas carroças atreladas a burros, cavalos apeados na sombra de dois juazeiros e nas estacas do aramado. Minha mãe parou Estrelante debaixo de um pé de jasmim branco, ao lado da casa de Tio Artú. Me segurou pelo braço e me ajudou a descer. Em seguida, ela desmontou e amarrou o cavalo. Passou as mãos pelos seus cabelos, assanhados pelo vento. Ajeitou os cabelos, me pegou pela mão e saímos em direção à casa. Era uma casa bem comprida, de taipa. Da frente até o monturo, havia girassóis enfileirados. As galinhas ciscavam sob os girassóis e ouvia-se gruídos de porcos no fundo da casa.
Um grupo de pessoas proseavam no
terreiro. Alguns homens estavam reunidos no telheiro. Minha mãe deu bom dia
para eles e entrou, me puxando pela mão. Na sala, exalava um forte cheiro de
jasmim. Minha mãe deu a benção e abraçou Tia Virgília, sentada numa cadeira,
dentro de um vestido preto, sem alegria no rosto. Minha mãe foi se acomodar
próxima à janela da sala. Fiquei ao lado dela, catando o enredo nos gestos e
trejeitos. Dois homens estavam de pé, ao lado de um caixão de madeira, no
centro da sala. Reunidas ao redor, dezenas de mulheres costuravam rezas. Os
homens, com chapéus nas mãos, tinham expressões sérias e os olhos detidos no caixão.
Dentro dele, Tio Artú, de camisa branca surrada da roça, com as mãos enlaçadas
sobre o peito. Em seu rosto, nenhum sorriso, nenhuma expressão, parecia estar
dormindo. Havia flores de jasmim branco arrumadas nas bordas do caixão e sobre
Tio Artú. As mulheres mais velhas,
vestidas de preto, rezavam com os terços entre os dedos. Algumas choravam por
trás de seus lenços. Os dois homens saíram em silêncio para o terreiro. Ao lado
de minha mãe, ouvi um grito de oi, oi, seguido de um choro abafado. Vi uma mulher
levando um lenço à boca, estendeu as mãos para o telhado e se calou. O coro de
rezadeiras não deixava as ladainhas se perderem nas brechas da parede. Minha
mãe não chorava, rezava batendo os lábios de leve, com o olhar pregado no chão
de barro batido.
As rezas e o cheiro do jasmim branco
enchiam o ar da sala, enquanto o vento galopava lá fora. Depois de um tempo,
deixei minha mãe, saí da sala na ponta dos pés, passei a porta e corri para
perto de Estrelante. Fiquei ao lado dele. Segurei suas rédeas, passei minhas
pequenas mãos pelo seu focinho, afaguei a estrela branca no meio da testa. Ele
cheirou meus cabelos e senti seu bafo quente. No alto, os galhos do jasmim
dançavam sobre nossas cabeças.
Vi as pessoas se movimentando no
terreiro, alguns homens entraram na sala. Minutos depois, seis deles saíram
carregando o caixão fechado. Tio Artú lá dentro, em sua camisa branca surrada
da roça, ornado com flores de jasmim. Atrás do caixão, se juntaram o restante
dos homens e as mulheres. O caixão foi colocado em uma das carroças. Alguns
subiram em carroças, outros montaram em seus cavalos. Seguiram a carroça que
conduzia o caixão de madeira. Na saída da porteira, as mulheres retomaram as
rezas e o cortejo desceu a estrada molhada naquela manhã de inverno. Minha mãe
saiu para o terreiro. Corri até ela e disse:
“Mãe, vamos pra casa, né!?”.
Ela me espiou por um instante, levantou a cabeça, caminhou até a porteira e parou, vendo o cortejo descendo a estrada. Deu meia volta e entrou na casa. Abraçou Tia Virgília, que não pôde seguir o cortejo. Se despediu dela, saiu da sala e fui atrás. Ela desamarrou Estrelante do pé de jasmim. Me pegou pelos sovacos e me jogou na garupa. Botou o pé no estribo e montou. Instigou Estrelante para fora da porteira, virou à esquerda e pegou o caminho de volta para casa. Quem prestasse atenção no rosto do garoto, sacudido pelo galope do cavalo, veria não só a satisfação da volta, mas uma expressão intrigada, um espanto do tamanho dele.
***
Três meses depois, quando o verão
abria as suas portas, acordei com o berreiro das vacas e dos bezerros. Saí para
fora. A luz do sol já se esparramava pelo terreiro e acariciava os espinhos do
mandacaru, ao lado da nossa casa. Vi Zinho sobre a cancela do curral,
assistindo meu pai tirar o leite das vacas, e Uísq deitado ao pé da cancela com
o focinho sobre as patas.
Entrei, calcei meu kichute e fui
para o curral. Subi na cancela e fiquei ao lado de meu irmão. Meu pai soltou o
bezerro, desapeou a vaca Lindaci, pegou o balde cheio de leite e veio depositar
num vaso de latão, encostado no canto da cancela. Limpou o suor do rosto com a
camisa, olhou pra nós e disse:
“O cavalo de vocês está ali, deitado”.
“Onde, pai”, perguntou Zinho.
“Ali embaixo. No fundo do chafariz”.
“O que ele tem, pai?”, perguntei.
“Não sei. Deve ser dor de barriga!”
“Vamo ver ele, Zinho!
“Nico, vá pra lá não. Ele...”, meu pai se
calou e saiu com a corda no ombro e o balde não mão, assobiando Triste Partida.
Apeou Boa Sina, botou o bezerro para puxar o leite. Amarrou o bezerro no
antebraço da vaca, pegou o banco e sentou nele, de frente para o ubro dela, de
costas para nós. Colocou o balde entre suas pernas e começou a ordenhar.
Desci da cancela em silêncio e saí
para a estrada, Uísq colou do meu lado, abanando o rabo. Zinho cabrerou e ficou
me olhando da cancela. Eu e Uísq descemos a estrada, correndo. Entramos no
chafariz, ao lado da cerca do pasto de meu pai. Subi no chafariz, apurei a
vista e apontei o dedo.
“Ói ele ali, Uísq, detrás daquela moita de
juazeiro”.
Passamos debaixo do arame e seguimos pelo
pangola. Acolá, as espanta-boiadas chiavam ruidosamente, o sol subia radiando
sua luz por sobre o campo. Contornamos a moita do juazeiro, vimos Estrelante
arriado sobre o pangola. Uísq farejou seu pelo castanho e ficou me observando. Andei em torno do velho cavalo. Parei na
frente dele. Sentei no capim, Uísq encostou do meu lado. Toquei nas ventas do
cavalo, respirava com dificuldade. Afaguei sua grande testa, sua estrela branca
no meio dela. Seu olho parecia contemplar o céu azul da manhã. Um olhar fixo,
impassível e calmo. Me perguntei se ele sabia o que estava acontecendo, se via
alguma coisa, por que não se erguia e saía galopando. Ele tentou levantar a
cabeça, parecia sem forças. Observava ele sem poder fazer nada. Lembrei dos
momentos bons que vivemos juntos, desde o dia em que meu avô tinha deixado
conosco. A pesar de velho, não era manhoso nem preguiçoso. Era um cavalo útil
para os pequenos afazeres e as pequenas viagens, além de fazer a alegria dos
garotos.
Toquei de novo em suas ventas, não
senti o bafo quente, não senti mais bafo nenhum. De novo, examinei seu olho
aberto, parecia fixar o infinito. Era como se ele estivesse mirando para dentro
do universo, para uma terra desconhecida, com um sentimento de comunhão
fatalista. Não havia rezas fúnebres, não havia medo, nem despedida no seu globo
ocular. Tive a impressão de que aquele olhar me ensinava algo sutil, que não
pude captar de vez. Mas captei o suficiente para intuir, através dele, que nada
dura como duram as pedras da estrada.
Me pus de pé e ergui a cabeça. Vi o
telhado da minha casa, a fumaça saindo da chaminé. Ouvi a voz rouca de meu pai,
entoando uma cantiga no curral. Olhei uma vez mais para Estrelante, ali deitado
em sua paz. Dei meia volta e Uísq me acompanhou. Pegamos a vareda e saímos no
chafariz.
Subi a estrada devagar, com Uísq ao meu lado, sentindo uma tristeza
agarrada nos cabelos, como se fosse arapuá. Fui chutando uma pedrinha aqui,
chutando uma ali e outra acolá. Catei algumas no chão e sai lançando as
pedrinhas por cima do arame farpado, entre os arranhentos. Para além de onde
elas caíam, o sertão começava a perder o encanto da terra verdejante.
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