Panóptico

domingo, 15 de abril de 2012

CONSCIÊNCIA SOCIAL (por Sergio Dedão)


Tristes premonições do que vai acontecer, por Goya.


 
 
 
 
Para o homem filósofo, historiador e visionário que desmistificou o Brasil: Caio Prado Jr.




 
 






Vi garotos de rua cheirando cola e catando bias de cigarros
                                                              no jardim de infância da Vida.
Assisti prostituta dize que além de dinheiro, aceitava ticket refeição
                                                        e vale-transporte por uma trepada.
Descobri que quem come os homens são as mulheres.
Ou melhor, é a mulher que se deixa. seduzir e ser saboreada,
                                                                                 tudo parte do jogo.
Ouvi a Esquerda declarar que iria mudar a estrutura social, política e
                                                                             econômica do Brasil.
                                  Pura balela: são todos da mesma natureza-laia
                                  Esquerda ou Direita, reacionário-conservadores.
          Observei sindicalistas protestarem em nome do Deus Dinheiro.
            Fui a vernisagens cheias de quadros que não diziam nada,
                                                         puro desperdício de tinta e tempo.
                         Vi ladrões de gravatas criando leis em nome do povo.
                         Assisti o Brasil, dito federação, trabalhar em nome
                                                    do elefante branco chamado sudeste.
                                             Descobri que a história educa os homens.
Ouvi dizer que Fernando Henrique também sabe justificar
                                                            suas merdas em vários idiomas.
Observei que o Brasil não deve comprar trigo da Argentina e deixar
                                             o “Cavalo” quebrar as Patas e as apostas.
Fui a palestras universitárias que não passavam de verborragia
                                                                                     intelectualizada.
                                      Vi nos fatos da história grandes homens,
                                          como Lamarca e Marighella, morrerem por
                                                                 uma grande causa brasileira.
Assisti prestes juntar-se a Getúlio depois deste matar sua mulher e
                                                                                           seus amigos.
Descobri que São Vicente-São Paulo quer escravizar o Brasil
                      em seu nome e no nome dos latifundiários e industriais.
   Ouvi dizer que o incêndio da Tupi foi criminoso. Dar pra adivinhar
                                                                                              quem foi?
Fui à escola-universitária e descobri que ela serve para conservar
                        tudo que é atrasado e conservador na nossa sociedade.
Vi via-satélite os aviões destruírem o símbolo capitalista-imperialista
                                                                      chamada Torres Gêmeas.
Assisti os americanos despejarem bilhões de dólares em bombas,
                     enquanto o povo do Afeganistão morria de fome e sede.
Descobri que vencer na vida não é ser culto,
                                                   é ter dinheiro para comprar o mundo.
Ouvi dizer que o cigarro causa câncer fiquei nervoso e acendi um
                                                                            cigarro atrás do outro.
Observei que grandes ideias e grandes homens só são compreendidos
                                                                               muitos anos depois.
                                           Fui a grandes festas e a grandes casas,
                                              mas nada disso me deixou deslumbrado.
Vi que no Brasil quem tem valor e pensa diferente é tratado como
                                                                                  indigente cultural.

Sergio Dedão
18/11/2001

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A UMA DESCONHECIDA (por Pirro)

"Mulata" (1972), by Di Cavalcante.





















Como numa tela de Di Cavalcante
vejo a nêga mais bela do Bugio
passando em minha porta
como um gato ágil e desconfiado.
Observo a eletricidade 
de seus movimentos
e lembro-me de Jackie Brown
iluminando o concreto urbano
de meus pulmões e mente.
Lá vai ela como noite selvagem
excitando o sangue de meus instintos...
Alheia às minhas sensações,
a nêga desaparece na esquina,
e fico tão bêbado como Bukowski
observando o saculejo do pandeiro dela.
A música pára de tocar no cd,
repito o disco e faço a cabeça
esperando ansiosamente ela retornar.
Creio que a vida pulsa por isso:
bebo, fodo, fumo e morro fumegante
para o sol do dia seguinte.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

PARA SANTOS E LEÕES (por Heitor Andrade)


(fotografia do filme Desejo e Obsesseção de 2001, com Vincent Gallo)













Que venham as pedras!
E os leões sem pecado
Que me afagam a pele,
Devoram a alma de carne
Por completo desprezo.
Para a nódoa que me trouxestes hoje,
E a cada dia,
Já não há mais lugar.
Meu lençol não é santo,
Como não é santo esse altar.
Venham, espinhos!
Dirimir os pecados,
Santificar a puta dissimulada
Em oblíquos olhos de ressaca.
Ainda tenho vinho tinto, rosas vermelhas
Ritmo do corpo, sangue fervente.
Venham sem medo!
Leões, famintos, em pecado
Putas-santas, em seus mantos vermelhos,
Devorar a carne da alma
Em completo desprezo.

                                                              Heitor Andrade

domingo, 5 de fevereiro de 2012

INVECTIVA PÓ-ÉTICA (por Pirro)
















Por que estou olhando o sol frio da madrugada,
no outro lado da cidade 
sem boates nem shopping centers?
Por que contemplo as bucetas divinas
que passam pulsantes 
diante de meus olhos de carcará?


Por que me chapo de cachaça até a tampa
nas mofadas tardes aracajuanas?
Por que busco acender uma chama  
entre as bestas mascaradas de cordeiros
que pastam nos campus universotários?


Por que ando plantando escarros
no meio de uma legião de hipócritas cristãos,
que ainda celebra o que há tempos 
já não pode ser celebrado?
Por que proclamar a igualdade,
se existem idiotas para serem domesticados?


Ora, ora... fodam-se os sacerdotes de plantão!


Felizes são aqueles que buscam 
            no chiqueiro de suas vidas
            uma postura pó-ética
            que afirme a vida em seu constante devir
            sem rezas, auto-ajuda ou metafísica.


Felizes aqueles que sabem colher ervas
            em seu próprio quintal,
            sem se preocupar 
            com o barulho messiânico
            do outro lado do muro.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

QUANDO O SOL NÃO APARECE (por Pirro)











“Todas as coisas em que me empenho tornam-se opulentas e acabam comigo”  (R. M. RILKE)




I

Há sete dias o sol não cai no chão do meu quarto. Seis e trinta da manhã e a chuva não pára. Eu gosto de chuva, mas tudo em excesso complica os ânimos. Um homem de verdade cansa da chuva e precisa de sol. Aracaju parece um aquário e eu me sinto como um peixe dentro dele. Quando abro os olhos, as goteiras da casa cospem no meu rosto. Pela pancada da chuva, imagino os barracos da periferia sendo tomados pela água e muita gente ficando cada vez mais fodida e xingando o prefeito.
- Pardal, sonhei com o Macaô, comenta Solange ao meu lado, pensativa.
O bode fica feio. Eu não gosto das poesias do Macaô e ele há muito já não bate uma punheta, desapareceu das vistas dos vivos. Lembro das palavras de Sérgio Dedão, quando me disse, certa vez:
- Pardal, é foda! Estamos aqui numa boa, de repente atravessamos a rua e tomamos no cu... Boom! morremos atropelados. 
É. Tem dias que você sempre acorda com o cu nascido pra lua e acaba dançando com a morte na companhia de Ingmar Bergman.
Levanto-me da cama, sento no sofá e ligo a TV. Vejo se há um vídeo-clip interessante na MTV. Sinto cheiro de merda. Desculpa “mano”, Rap não dá pra ouvir. Vou até a estante de CDs. Mando a MTV pra puta que pariu e ligo o som. Boto Lemmy e o Motörhead para estrondar o temporal. Nada melhor para alcoolizar este inicio de dia chuvoso e espantar o bode do meu quintal.  Sinto o gosto de álcool na minha garganta.  Fico dando pulos com a zoeira de Aces of Spades. Vou pulando feito um cachorro alegre até a cozinha. Abro o armário à procura de álcool. A garrafa de Cabucana está vazia e triste. Na geladeira só há água. Motörhead com água não cola. Abro de novo o armário em busca de uma garrafa milagrosa. Lá está a garrafa de cabucana vazia e triste, enquanto a chuva bate lá fora. 
Solange aparece na porta do quarto.
- Porra véio, você é foda, não respeita os ouvidos dos outros.
- É só umas duas... Tô precisando sacudir o corpo. mas faltou gasolina e o tanque tá vazio.
- Por que não vai tomar café e desliga esse som enjoado?
- Porra, você não entende.
- Não entendo o que? Você fazendo zuada a essa hora da manhã?
- Estou tentando fazer com que o sol apareça, sabe.
- Sim, você é mágico agora.
O trovão explode o céu lá fora. Solange vem e senta ao meu lado. E, de novo, me diz que não dormiu bem e sonhou com Macaô num caixão sem poesia. Eu não queria pensar nos falecidos, mas já era tarde e o bode se complicou. Está difícil de o sol aparecer. Tiro o Motörhead do palco pensando em desligar o som. Desisto e coloco Closer do Joy Division pra afundar o mundo, suas belas mulheres e todos os pesadelos. Aciono a faixa 6, Hart and Soul. Boto num volume de som ambiente. Que a vida seja uma centelha de loucura e que as pernas tremam, mas não arriem de vez.
Solange faz o café. Me trás uma xícara quentinha e eu aceito. Ela pega um bolachão de côco e saboreia em silêncio ouvindo a queda da chuva no telhado do Bugio.
- A mãe de Cruelzinha tem pavor de trovão, disse.
Esvazio a xícara de café e acendo um free. Fico interessado pela história da mãe de Cruelzinha.
- Qual foi o problema da velha?
- Foi um trauma. Solange falou balançando a cabeça lentamente. É foda, véio. Eu tava na casa dela. Aí começou a chover e trovejar... A mãe de Cruelzinha correu pra dentro do quarto. Se cobriu todinha com o cobertor e chorava. Pegou o terço e começou a rezar desesperada.
- Uma vez, eu ainda pirralho, vi um velho em minha casa...
- Que casa? Aqui?
- Não. No sertão. Eu tinha 09 anos mais ou menos, disse prosseguindo. Seô Paizinho chegou debaixo de uma trovoada de lascar. Os nervos arriados e ensopado de chuva. Meu pai o abrigou em casa. Ele tremia pra caralho. Eu ficava pensando o que deu no velho pra ter medo de trovão daquele jeito. Eu disse, dando uma tragada no cigarro. Quando me lembro disso, me vêm à cabeça os mitos do mundo antigo. Os temores dos homens diante de algo que eles não podiam compreender. Os navegadores que o digam. No momento em que o barco recebe a pancada de ondas furiosas, eles sabem, Posseidon está irado. Imagine! Posseidon irado e os homens se cagando nas calças. Chegou ao ponto de prestarem cultos e oferendas pra acalmar o deus raivoso. Na verdade, o mar estava agitado e era maior que o homem-formiga. Quando eu me volto e vejo o homem civilizado na minha frente, eu começo a rir. São mais medrosos ou até pior que os seus avós. E quando ficam velhos, aí é que você vê todo mundo virando padre.
- Outro dia, a mãe de Cruelzinha correu pra debaixo da cama e chorou tanto que quase morre de soluço. Ela chora como se o mundo tivesse caindo em cima dela. Basta falar em trovão, pra ela se benzer...
- É incrível como a natureza desorienta os homens. Acho que foi por isso que deus foi criado. Tão grande quanto uma natureza estranha, mas tão pequeno quanto o meu pau. Eu falei como se fosse o mais feliz dos destruidores. Solange balança a cabeça negativamente, não concordando comigo.
- Lá vem você.
- Mas é, deus é fruto dos medos e da neurose das pessoas.
Solange fica olhando o teto balançando suas torneadas pernas. Termina de beber o café e diz:
- Ainda vou ver você pedindo pra jogar a cruz. Disse ela tirando onda.
- Espere sentada, Sol.
- Você vai se rastejar como Zé do Caixão naquele filme que a gente assistiu.
- Sei, você quer me ver fodido, né.
- Como é o nome dele?
- De quem?
- Do filme.
- À Meia-Noite Eu Levarei Sua Alma. Eu disse, enquanto a voz de Ian Curtis cuspia Decades.
- Pois é, herói. Vou ver você segurando a cruz.
- Que cruz! A cruz é um pedaço de pau. Tô cagando e andando pra cruz, deus, pecado, redenção... essas babaquices. Tô pouco me lixando.
- Você é doido, e quer endoidar os outros.
- Obrigado pelo elogio, baby.
Ela sai rindo pra cozinha. Fico em pé na sala, observando meus CDs e livros. Lá está John Fante perguntando ao pó pelo sentido da vida. Lá está Iggy Pop com o dedo em riste para a América. Lá estão as putas de Henry Miller com as pernas abertas para foder com o mundo. Lá está a mulher mais linda da cidade de Bukowski, com sua mente louca e pirada. Há muita gente boa zanzando no Planeta do Caos, mas os medíocres é que fazem a festa.  Os homens-bobos, os fodões do pedaço estão enchendo a Terra com seus estercos e a cultura da midiotia.
Lá fora, a chuva não cessa. A voz de Ian Curtis mantem o ritmo da atmosfera. Volto-me a pregar os olhos na coleção de CDs e de livros. Eu sei que sempre vai haver preleções nietzschianas regadas a biritas e baseados na casa de outros Marks.  Também sei que os puteiros encantados de bucetas vão continuar manchando os belos portões das igrejas e sei que, por um bom tempo, os padres e pastores vão mostrar suas mãos sujas de pilantras. Então, é perda de tempo entrar em confusão, tem de sair chutando a lata de lixo como um gato no escuro, seguindo o próprio beco que ele mesmo escolheu. Não é nada de mais vestir a máscara que lhe dão.  O pior é pregar a bunda num assento confortado e achar que o Messias voltará para salvar seus pobres cordeiros, e que os políticos estarão se confessando com suas prestações de contas bem intencionadas. Fodam-se todos. Acendo outro cigarro. A cada baforada, eu vejo a santa manada e sua tentativa frustrada de redenção, se rastejando como vermes neuróticos sobre a Terra. E o único Messias que vi retornar foi um cara que conheci, que tinha sangue no olho.
Lá pelas onze, a chuva dá um tempo.  Desligo o som.  Ponho uma beca massa na carcaça.  Precipito-me até o espelho.  Contraio as faces.  No teto, uma catenga balança a cabeça e parece me dizer: é isso aí.
Acendo outro cigarro, digo até à volta para Solange, e saio. Pego o ônibus Bugio-Augusto Franco. Vou à casa de Mark, no Centro da cidade.  O cara é foda! Mal eu chego já vai logo perguntando:
- Pardal, bota um real aí para comprar um leriado?
O sol ainda não deu o ar de suas graças e a cidade continua parecendo um aquário encharcado. E eu um peixe tentando sobreviver nesse aquário provinciano e poluído.  Aracaju parece na verdade com uma xerox soteropolitana.  Não poderia ser diferente.  Faz jus ao seu orgulhoso apelido: Cajueiro dos Papagaios.  Continuo andando pelas sarjetas de suas artérias entupidas como um rato à deriva.  Aracaju não suporta meia-hora de tempestade em suas costelas.  Transforma-se logo num mar de lama.  Aracaju, eu sou o seu rato e você é minha puta mal resolvida.
Desço no ponto de ônibus da Avenida Simeão Sobral, sigo pela João Ribeiro. Atravesso a praça que vai dar em frente ao cemitério Santa Isabel. Passo na casa de Sergio Dedão ao lado do cemitério e os pais dele estão sentados de baixo do pé de cajarana. Pergunto por Dedão e eles dizem que está na casa de Mark. Eu falo que estou indo pra lá e digo até logo pros coroas do Dedão. A mãe dele me diz:
- Que o senhor Jesus o livre dos malignos e invisíveis.
Eu respondo um muito obrigado por gentileza, e sigo em frente.
Já estava na Avenida Coelho e Campos.  Próximo à casa de Mark.  No instante em que vou atravessando a avenida, ouço uma derrapagem de pneus cantando na pista encharcada. Recebo um baque e sou lançado a metros de distância.  Tudo foi uma questão de segundos. No susto, ergo os braços na tentativa de amortecer a pancada do automóvel.  Em vão. Caio com todo o corpo nos braços da sarjeta, junto ao meio-fio.  Permaneço num estado de inconsciência parcial. Revivo alguns perfect days da minha vida. Mas não enxergava porra nenhuma ao meu redor.  Só vozes.  Várias vozes.  Minha carcaça estendida na sarjeta estremece de dor.  Sinto todos os membros paralisados. Uma célula de vida parece manter o cérebro pulsando.  Sinto gosto de sangue na boca e uma vontade de urrar.  Puta que pariu, me fodi. Adeus bares da minha vida e maresias canabídicas nas noites aracajuanas, adeus a buceta cheirosa de Solange e todas as bucetas do mundo, adeus.
O vozeiro aumenta ao meu redor. “Me dê uma dose de cachaça”, eu digo. Ninguém entende.  E se ouvisse, jamais entenderia.  Logo, sinto o corpo torado de dor. “Esse já era!”, ouço em tempo alguém dizer em meio a outras vozes.  As vozes vão se tornando distante...  O nada me engole...

II

De início, ouço a tagarelice barulhenta dos pardais como num sonho distante. Sinto o vento soprar em minha cara. De olhos fechados, ouço uma voz dizer em um recôndito qualquer: “ele está bem. Resistiu às lesões”. Depois, tudo volta a ficar em silêncio. Tempos depois, abro os olhos de leve e vejo a luz do sol que entra por uma pequena janela. Olho em torno. A cor branca dá o ar de sua graça em todo ambiente. O paraíso existe, penso de relance. Estou no paraíso. Como fui otário não ter acreditado no paraíso. Meu espírito fica iluminado pelo sol do paraíso, que vem de algum ponto qualquer do paraíso e entra pela janela. De repente, uma porta se abre. Um anjo – só pode ser um anjo – entra. O anjo usa roupas brancas e segura uma espécie de bandeja em suas imaculadas mãos. Abro minhas retinas para enxergar melhor e ele abre um sorriso pra mim com seus olhos de anjo.
- Bem vindo ao novo mundo, rapaz.
- Obrigado.
- Como se sente?
- Eu?
- É.
- Acho que... feliz por estar no novo mundo.
- É mesmo!?
- Humhum. Quem é você? Um anjo?
O anjo se desmanchou numa doce gargalhada.
- Não está vendo, sou a enfermeira do Hospital.
- Sério?
- Sério. Você ainda está um pouco fora de tempo. Normal para quem passou sete dias na UTI.
Enquanto fala, a enfermeira injeta uma droga em minha veia por uma seringa. Aos poucos, começo a sintonizar a realidade. Percebo que estou tomando soro sobre um leito branco de hospital. Ela me relata o acidente que eu havia sofrido na Coelho e Campos, e fala do período de convalescença no hospital. Disse que eu recebera uma pancada na cabeça e sangrara pelo nariz e que foi minha sorte ter sangrado assim, se não teria morrido com o sangue acumulado no cérebro. Disse-me ainda que eu tinha sofrido fraturas expostas tanto no braço direito quanto na perna esquerda, além de algumas escoriações pelo corpo.
Ao ouvi-la, algo ferve lá dentro de meu estômago. Compreendo que havia renascido das cinzas, tal como Dionísio Zacreu quando foi trucidado pelos Titãs. Estou vivo, vivo! O grito retumba em meus ossos. Uma satisfação íntima percorre a espinha dorsal. Volto-me para a enfermeira:
- Quer dizer que estou de volta à vida, ainda não me tornei cinzas.
- Realmente. Você é um herói. Disse ela sorridente.
Sem ter pincéis para desenhar meu contentamento, eu digo pra mim mesmo: sou um herói. Ela termina de ministrar as medicações e, antes de retirar-se, pergunto-lhe:
- Quando vou sair daqui?
- Não sei. Vai depender do seu heroísmo e da avaliação do seu médico.
Ela solta mais um sorriso para mim e retira-se. Sigo o anjo com os olhos. Ele sai serpenteando seus quadris arquitetônicos embaixo daquelas roupas de enfermeira. Meus olhos se fixam na bunda espetacular, no desenho de sua calcinha branca. O anjo desaparece no corredor. Cerro os punhos e balbucio em silêncio: bem vindo à vida, Pardal. O mundo continua tendo sentido e cor, sob os acordes de blues, rock and roll e belos rabos de anjos.
Sete dias depois, recebo alta do hospital. Retorno à minha sweet home. Chego debaixo de uma forte chuva. O sol havia se encolhido em sua toca cósmica. O dia está coberto pelas cortinas d’água e faz frio. Quando o táxi para na frente de minha casa, penso ser igual a D. Pedro I no “Dia do fico”. Significa o meu retorno às tempestades da vida com o sentimento de que “não há nada de novo debaixo do sol”. Ainda vou poder experimentar o cheiro das ruas e suas alegrias e paranoias, com a certeza de que problemas existem e, se não pudermos resolvê-los, fumaremos um cachimbo da paz na beira do Rio Sergipe. Verei mais uma vez os políticos mentindo descaradamente e comtemplarei o papa e sua corja praticando crimes contra a humanidade, sempre buscando a válvula de escape das desculpas e do perdão, como requer toda finíssima santidade.
Saio do táxi com uma ideia repentina na cabeça: uma vontade de cair no meio da chuva e rolar no asfalto. Mas logo me senti ridículo e sem graça parecendo ator de novela. Tiro a ideia da cabeça, sacudo ela no asfalto encharcado e me precipito pra dentro de casa. Paro no meio da sala e lá estão meus camaradas me esperando sobre a estante: Homero, Nietzsche, Henry Miller, Fante, Bukowski, Rubem Fonseca, Lou Reed, Rimbaud, The doors, Bob Dylan, dentre os muitos outros figurões. Solange me abraça e chora sorrindo. Agora parecia a novela das seis, mas pelo menos uma novela com vida. Eu a abraço e aperto sua cabeça no meu peito. Ela vai preparar o café e eu fico na sala observando aqueles homens de espíritos livres na estante. Penso que estar vivo é como encher de vida, movimento e sol as coisas que cultivam o fogo que arde dentro de todos nós. E, ao mesmo tempo, tudo se constitui de cheiro, paladar, palavras, dança e até mesmo drama. Sem drama nossa vida não se move. Certamente tudo é fantástico, divertido e doloroso.  Me vem à mente os seres cansados da vida, que sujam  as coisas com seus espíritos de porco. Eles exigem que o mundo flutue como suas merdas sublimadas nos esgotos encharcados da cidade. Reclamam de tudo e vivem culpando os outros por suas misérias. Suas jeremiadas não me agradam.
Ligo o aparelho de som. Coloco Nação Zumbi pra rolar. Depois atendo ao chamado de Solange pra comer cuscuz com frango assado. 

III

Os dias passam e o sol surge todas as manhãs como um antigo totem. Volto a costurar o meu cotidiano de sempre em meio ao burburinho medíocre de Aracaju. Mas quem se importa com seu burburinho bairrista? Na verdade, mesmo fingindo, eu me importo. Os papagaios me afetam com sua cultura da terrinha. Mas não vou me matar por causa disso. Prefiro meter o dedo e rir.
Num domingo de manhã, as pessoas passam indo e vindo da feira. Vejo dois sujeitos carregando um engradado de cerveja. Meus desejos ficam aguçados, já é tempo de beber uma gelosa. Vou à Mercearia Itabaiana e volto com cinco cervejas bem geladas e um maço de free. Abro a primeira e encho meu copo de alumínio. Só gosto de beber em copo de alumínio. Tomo uma grande golada e estralo a língua saboreando a cerva como uma criança comendo doce. Solange aparece e me diz:
- Você ainda não pode beber.
- Relaxe, Sol. Está mais do que no tempo. Sou um herói.
- Bom, você é quem sabe por onde é mais perto, herói. Disse se retirando pra cozinha.
Encho mais outro copo e viro de uma só vez. Ligo o som e convido Lou Reed pro palco da minha sweet home. Cante para mim, Lou. Ele sobe no palco e canta I’m so free, enquanto eu começo a sacudir o esqueleto. O poeta novayorquino parecia me dizer: bem vindo de novo ao tetro da vida, Pardal. Abro mais uma cerveja. Nada de cantores da terrinha, penso eu. Eles ainda estão na fase romântico-rococó e, além do mais, meu sangue é cosmopolita. Vinheram mais outros crâneos para cantar em minha sala-de-estar: Stones, Neil Young, Creedence, Pixies, Raul Seixas e Marcelo Nova. Bebo mais um trago e ouço todos eles dizerem: bem vindo ao mundo, Pardal. Carpe diem, meu chapa! Eu aceno ok para eles e danço freneticamente, tocando guitarra num faz de conta, balançando a cabeça com o copo de cerveja entre os dedos.
Solange está na cozinha preparando o almoço, tão prendada como uma verdadeira Penélope. Agora, coloco o Pixies pra gruir como um javali e chamo por Solange:
- Solange!
- Que é!
- Prepare um cigarro-de-palha pra mim.
- Você não pode fumar free, muito menos esse.
- Oh, Sol, please, please!
 - Quê?
- Por favor.
- Você ainda não está cem por cento.
- Estou sim. Sou um herói.
- Ah, tá bom, herói chato do caralho. O que seria de você sem mim...
Enquanto Solange prepara meu cigarro-de-palha, me dirijo até o espelho, dançando minha dança desafinada. Meus olhos e a pequena careca refletem nele. Olho para o teto da casa e lá está a catenga balançando sua pequenina cabeça de modo afirmativo, como quem dizendo: é isso aí. Depois, me devolve um sorriso gentil como que acrescentando: bem vindo, bicho, ao lar nosso de cada dia.
- Seu cigarro está pronto. Ouço Solange dizer.
Detenho-me mais uma vez na figura refletida no espelho. Volto para a sala sacolejando o espírito, cantando We’re chained, baby. Acendo meu cigarro-de-palha e fico contemplando os contornos surrealistas da fumaça e, como pensamento é coisa sem direção, penso nas garotas da Universidade Federal, em seus cérebros e suas pinturas. Acabo de fumar e o sol nasce em meus olhos clareando o mundo.  Abro mais uma cerveja e convido Solange para beber um copo comigo. Solange acende um cigarro e traga. Esqueço as garotas do Campus. Tiro o Pixies e coloco The doors no toca-cd e, no embalo de Light my fire, eu disse pra Solange:
- Vamos trepar.
- Essa hora, quase meio-dia?!
- No Japão, exatamente neste instante, os japoneses estão gozando de olhos fechadinhos.
- Deixe pra mais tarde. Tenho de terminar o almoço.
- Caracolzinho bem amado...
- Caracolzinho bem amado! Porra, você tá tirando onda com minha cara.
- De jeito nenhum.
- De onde você tirou isso?
- Ué, saiu. Menti pra ela, pois na verdade eu li a frase numa carta de Paul Reé para Lou Salomé. Ela se retirou pra cozinha dando gargalhada:
Caracolzinho... Huhuui!
Ela mexe nas panelas no fogão e depois retorna. Toma mais um gole de cerveja e me olha:
- Antes... Ela hesita um pouco e logo prossegue: Antes preciso falar com você... Desde manhã, estou querendo lhe falar, mas... quer dizer, desde quando você chegou do Hospital.
- Pode falar, eu disse já meio de fogo.
- Solange se levanta do sofá, vai até o aparelho de som, diminui o volume e volta-se para mim:
- Fiz uma promessa.
 -Promessa? Como assim?
- Você está legal, não está?
- Claro que estou.
- Então, a promessa que fiz foi justamente pra você ficar legal.
- Agora deu! Seja mais direta, Sol.
- Então, quero que você me acompanhe até a Igreja pra gente assistir à missa das 19. É preciso pagar a promessa que eu fiz para que você ficasse bom do acidente.
- É o que! Agora quem tá tirando onda com minha cara é você. Que porra é essa!
Encho o copo de cerveja e viro todo de uma só vez. A essas alturas, Raul Seixas e Marcelo Nova entoam Pastor João e a igreja invisível. Olho pra Solange. Como a maioria das mulheres são metafísicas e tragicomediantes religiosas.
- Porra, Sol, você é maluca? Você sabe que eu prometi pra mim mesmo que nunca iria entrar numa droga de igreja. Agora, você me vem com essa pataquada: ir á missa pra ouvir o sermão daquele fantoche de merda, falando abobrinhas. Eu disse injuriado.
- Mas neguinho...
- Neguinho uma porra! Rebati.
- Foi um milagre por você ter sobrevivido...
- Chega, Sol. Milagre uma pinóia.
Sinto meus nervos à flor da pele. Acendo um free e dou uma tragada pensativo. Solto a fumaça em forma de espiral até ela se desvanecer no nada. Observo Solange sentada no sofá. Parecia emburrada com o semblante triste. Olho para suas pernas abertas com o paraíso escancarado em minha frente. Um paraíso problemático, diga-se de passagem. Ao invés de sua devoção para com Jesus, deveríamos estar fodendo agora.
- Tenho de pagar a promessa, entende Pardal.
- Solange não existe dívida, a não ser em sua cabeça.
- É você quem diz. Mas tenho que pagar...
- Eu não devo nada a ninguém, ok.
- Deve sim, seu doido!
- Ah, foda-se. Vá sozinha se quiser.
- Mas tem de ser nós dois.
- Já disse, não devo nada a filho da puta nenhum.
      Levanto-me e entro no quarto. Pego a camisa dos Ramones, que um amigo havia me dado de presente, visto uma bermuda, calço o tênis e me dirijo para porta. Abro o cadeado do portão e caio fora, sem destino certo, sem canções de herói.