Panóptico

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

CONTO ORDINÁRIO


          Chegamos atrasados ao Colégio Paulo Costa. Caso o Sargento Messias Bradockinho tenha passado para fiscalizar, estaríamos fodidos. Morais falou pra que eu ficasse tranqüilo porque ele era peixe do homem. “Confia em mim, fique frio”, disse ele. Como ele gostava do U2, então fiquei frio. Uma hora depois uma viatura parou na frente do colégio. O sargento Bradockinho desceu do carro com sua prancheta. Ele parecia um chupanzé da Cia. de Segurança Escolar. Estávamos conversando com duas garotas. Deixamos as garotas e no dirigimos até a viatura.
“Vocês chegaram atrasados”, disse ele.
“Não sargento, Chegamos sete em ponto”, falou Morais.
“Sete em ponto?”, Perguntou olhando vesgo pro Morais. Eu comecei a rir.
“Por que tá se abrindo, Pardal? Tá vendo algum palhaço aqui?” disse de cara dura. “Se feche, soldado”. Então eu me mantive na minha posição de soldado me papocando por dentro.
“Sim, senhor”. Falei.
“Onde vocês estavam?”, olhou carrancudo para Morais.
“Sargento, estávamos nos fundos do colégio”, eu arrisquei.
“Fazendo o que?”
“Rondando a área, sargento”, disse Morais.
“Reconhecimento do terreno”, eu emendei de novo.
“Sim, Pardal. Eu sei qual é o reconhecimento de vocês”, disse ele olhando para as garotas. “Cuidado pra não pagarem pensão”.
“Estamos de olho aberto, sargento”.
“Por isso estamos fazendo reconhecimento do terreno”.
“O lugar de vocês é aqui na frente do colégio. Nada de ficar nos fundos. Fiquei, aqui, mais de meia hora esperando vocês aparecerem”. Bradockinho fez algumas anotações na prancheta. “Vou voltar por aqui ainda hoje”. Entrou na viatura. “Tô doido pra botar pra foder com os nozeiros, hoje”. Quando ele saiu fora, me voltei pro Morais:
“Belo peixe você tem, cara”, eu disse.
“Porra, bicho, hoje ele tá com tpm”.
“O cara é de lua. Não gosto desse tipo de goela”
O vigia do colégio apareceu no portão. Depois veio em nossa direção.
“A diretora quer falar com os senhores”
Seguimos o vigia até a sala da diretora. Ele nos mandou entrar. Uma coroa de 45 anos, mais ou menos, estava sentada atrás de uma escrivaninha. Observou nossos nomes de guerra, no peito varonil da segurança nacional. Aconchegou-se mais na sua cadeira-de-presidente. No quadro da parede atrás dela, O governador João Alves pousava como um verdadeiro estadista tupiniquim com seu sorriso de enganar meninas.
“Morais e Pardal, não é?”
“Exatamente, Senhora”, Morais afirmou.
“Me denunciaram que alguns alunos estão usando maconha no banheiro masculino. Queria que vocês fossem lá verificar isso. Veja quem foi e traga até aqui”.
“Quem denunciou, senhora?” falei.
“Dois alunos da Congregação Aliança Libertação para Cristo”.
“Vamos dar uma checada, Pardal”. Disse Morais olhando para mim.
“Vamos lá”
Saímos da sala da diretora. O vigia nos seguiu. Descemos o corredor e passamos pelo pátio da escola. Vi Robinho sentado no banco do pátio, rindo e conversando com alguns colegas e três garotas. Parece que não havia dúvida de quem havia puxado um no banheiro. Robinho nos viu e eu acenei para ele. O vigia me olhou de relance.
“Diga, Pardal. Beleza?”, falou Robinho.
“Beleza”, eu disse sem me importar com o vigia. Ele não passava de um rato ignorante. Um típico devoto de frei Damião.
Entramos no banheiro. Maresia das fortes. Verificamos em torno. Morais olhou pra mim:
“Tá sentindo?”
“Tô. E é das fortes”, eu disse elevando o nariz, como um cão farejando um osso carnudo e cheiroso.
“Já sabe quem foi?”
“Não”, respondi.
“Foi Robinho. Certeza”.
“Não sei”.
“Ele mora na I-3”
“Eu sei. A gente bate bola na rua quase todos os dias”.
“Vamos sair, deixa essa porra pra lá. Já joguei com ele também na quadra do Francisco Rosa”.
“O cara é gente boa”, eu disse.
“Eu concordo”
Saímos do banheiro. A maresia foi evaporando-se aos poucos. Mas dava para enlouquecer um padre. Subimos o corredor do Colégio Paulo Costa. O pátio ficou lotado de estudantes. Robinho ainda conversava com as três garotas, sentado no pátio.
“Sabe, velho, talvez se botasse a molecada pra fumar na escola, os estudos seriam mais proveitosos”.
“Seria como uma merenda no recreio, né”.
“Correto. Teríamos grandes filósofos e poetas, ao invés de operários fodidos”
“Mas é uma idéia absurda para atual burrice mundial”
“Ainda bem que têm caras como Bono Vox aí pra melhorar as coisas”
“Ainda bem que tem caras como Bukowski pra cagar no telhado das igrejas”
“E sem pagar pedágio”
“É”.
Entramos na sala da diretora. A secretária disse que iria chamá-la. Olhei pra cara de João Alves. Não sei por que me lembrei do engenheiro João Alves pai. Dizem algumas más línguas, que o velho gostava de menina nova. Eu não sei de nada. Só sei que o negão botava uma pose e tanto.
“Olhe ali, o seu digníssimo patrão”
“Esse ladrão, filho da puta”, disse Morais. “Até agora não deu o nosso aumento”.
“Sossegue, se não vamos acabar montando uma guerrilha”.
A diretora apareceu na porta da sala. Entrou. Passou por trás de nós e foi se sentar na cadeira-de-presidente bem à nossa frente.
“Viram ou sentiram alguma coisa?”, perguntou olhando para nós dois.
“Não. Não vimos nem sentimos nada”, eu falei.
“Acho que foi um alarme falso”, falou Moraes.
“Não. Não acho. Os garotos da Congregação não iriam fazer alarme falso”.
“Diretora, as aparências enganam”. Eu disse mesmo odiando frases feitas, mas nessas horas elas ajudam.
“Como assim?”
Olhei pro retrato de João Alves, olhei para ela e depois pro meu colega Morais. Ele adiantou-se:
“Ele quis dizer que os garotos da Congregação talvez tenham se confundido. Não vimos nada, diretora”, Morais falou com um tom de voz que fez a diretora repensar a situação.
“Bem já que não viram nem sentiram nada, eu agradeço a gentileza. Obrigado”.
“Se precisar é só nos chamar, senhora. Estamos à disposição”, Morais disse. Retiramos-nos da sala da fiel cadela de João Alves e fomos nos postar bem no portão da escola.
As duas garotas se aproximaram. Nilzinha estava a fim de Pardal, mas Pardal infelizmente não gostava de garotas que se pareciam com ovo de avestruz. Genilma era uma morena de cima, mas estava de olho em Morais. É a vida e suas malditas contradições heraclitianas. Nilzinha tirou uma bala do bolso. Genilma era linda. Eu disse pro Morais que ela se parecia com Pam Grier.
“Quem é essa doida, porra?”
“Uma puta do Pipo’s”
Aí começou a rolar aquela onda de adolescentes:
“Aceita?” disse Nilzinha, me entregando uma bala ice-kiss.
“Aceito princesa”, deu vontade de chamá-la de ovo de avestruz. Tirei a bala do papel e pus na boca.
“Qual é a frase que tá escrita no papel?”. Olhei pra ela. Até que seus olhos eram lindos. Mas da cabeça pra baixo as coisas não se encaixavam.
“Deixe-me ver: ‘Quando estiver só, lembre-se de mim’”, eu li em voz alta.
“Nossa, meu. Que romântico”, falou Morais. Fiquei olhando pra sua cara-de-pau. Ele voltou-se para Genilma: “Só eu, que não ganhei uma bala assim”.
“Não seja por isso, meu bem. Tome uma”, disse ela se abrindo.
“Muito obrigado, minha deusa marron”. Ele desenrolou a ice kiss e pôs na boca. Depois leu o papel: ‘Hoje eu quero sair com você’.
“Virge Maria, essa foi no últero!”, disse Nilzinha.
Já estava me enchendo de toda aquela idiotice. Sempre é assim. Policiais no serviço são sempre ridículos quando estão perto de mulheres. Morais estava todo cheio de si como um galo que acabara de comer a galinha. Ele cruzou os braços para mostrar seus músculos bombados. Eu ri e falei:
“Você tá parecendo o Rambo”
“Vá se foder, Pardal”.
“Você malha em qual academia”, perguntou Genilma.
“SportConnection”. Disse ele. Filho da puta mentiroso, eu disse para mim mesmo.
“Fica aonde”, disse ela.
“Fica na 13 de Julho”
“Hum! Bairro de gente chique”.
“Você paga quanto lá, Morais, pra deixar esse corpo todo bombado?”, eu falei.
“Bombado, um caralho! Aqui é malhação e muita comida balanceada”.
“Sei. Por isso me disseram que você gosta de fazer fio-terra”.
“Já começou a tirar onda. Dou-lhe um murro, soldado palito”, falou ele mostrando o muque.
“Você, Pardal, malha aonde?”, perguntou Genilma.
“Quê! Com esse corpinho, hum!” Fez Morais.
Levantei os braços e cerrei os punhos.
“Eu malho na academia Estampa de Grilo”
As garotas não agüentaram.
“Essa porra é poeta. Só vive com um livro debaixo do braço”, ele emendou.
“É, deu pra notar”, disse Nilzinha. “Depois, quero ver um poema seu”.
“Tá certo”.
“Faça uma poesia pra ela, viu poeta”, falou Genilma.
“Acho que é preciso exorcizar umas boas doses de cachaça mineira”
Depois de muita conversa fiada, as garotas se foram. Estávamos na metade do serviço. Havia alguns garotos fora da escola, conversando e esperando os anjos de saia sair da aula. Não sei por que, sempre que vejo esses caras na frente da escola, lembro do velho ditado ‘quem tiver suas cabritas que segurem, que meus bodes estão soltos’. Jovens com a cabeça falida, que só pensam em noites de pagodes e muito axé, além de comer uma boceta e sair espalhando a boa nova entre os idiotas
“Ói quem vem ali, Pardal” disse Morais.
Pensei que era uma nega gostosa, apenas vi uma figura alta e desengonçada.
“Diga, Fernandinho Punkrock”.
“Diga, véio”, respondeu ele.
Fernandinho Punkrock trazia o quepe na mão. Seu nome de guerra era Mendes.
“Tá em qual colégio, Punkrock?”, quis saber.
“Tô ali no São Carlos. Escola Dom Bosco”.
”E o seu parceiro, cadê ele?”
‘Tá, deixei lá sozinho”.
“Rapaz, o sargento Bradockinho tá com tpm. Se ele pegar você aqui, vai botar no seu cu punk”
“O chupanzé tá numa caxiagem do caralho!”, eu acrescentei.
“Ele passou por lá. Parecia uma moça”, disse Punkrock, rindo.
“Nunca confie em caras com cara de moça”, eu falei.
“Eu sei disso, véio. Tem de saber contornar os goelas. Bradockinho é meu chegado. Cervejamos juntos várias vezes. Eu perdi as contas das vezes que enchemos a cara lá no Pippo’s. Bradockinho é bom de copo. Um dia, arrebentou a cara de uma puta. Tive de contornar a onda”.
“Porra, Punkrock, não sei como você suporta beber com ele. O cara é um prego”.
“Eu sei disso, véio. O cara é um alienado. Só gosta de pagode, Raça Negra, Jorge Aragão, axé... essas coisas macabras. Morais sabe disso, já bebeu com ele”.
“É, eu sei. Botei U2 pra ele ouvir uma vez, ele não gostou nem a pau. Disse que era música de cheirador”.
“Vamos parar de falar de merda, senão a gente vai acabar sentindo o cheiro”. Eu intervi.
“Que farda bagaçada é essa, Punkrock?!”, perguntou Morais.
“Ô, véio, a polícia não dá farda. Eu mesmo não compro. Não é minha obrigação”.
“Trata-se de sua aparência pessoal, Punkrock. Vá esperar pela polícia, que você vai virar mendigo”.
“Aparêcia de cu é rola, Morais. Mendigo é o salário que eu ganho. Não sou vaidoso como você, não”, disse rindo e coçando os culhões.
“O cara é um soldado punk, Morais. Deixe o cara”, eu falei.
“Já fui. Se Bradockinho passar por aqui, diga que não me viram”, disse Punkrock se retirando.
“Hei, vai pra onde”? Perguntei.
“Vou ali, na casa de Saburica, ouvir um som”.
Punkrock caiu fora. Às onze da noite, eu peguei o caminho de casa e Morais o dele. Passei pela Praça do Bugio. Três caras e duas garotas fumavam cannabis tranquilamente. Quando me viram disfarçaram meio que nervosos. Fiz de conta que não me importava. Atravessei a rua e chutei uma latinha de cerveja no meio da rua, desejando chegar logo em casa. Precisava relaxar a mente e ler um bom livro.

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